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O Brasil quer combater ou incentivar seus cassinos jurídicos?

Globo (publicado em 30/12/2021)

Em teoria, normas jurídicas são textos concisos, de origem política, capazes de definir com clareza como se distribuem os direitos e deveres entre os membros da sociedade, bem como as competências entre as autoridades públicas. Em um Estado de Direito, é com base nessas normas que os órgãos estatais técnico-jurídicos tomam decisões e solucionam conflitos, por meio de processos impessoais. A vantagem do sistema é evitar que a vida social e estatal acabe guiada por violência, voluntarismo, corrupção ou acaso.

O Brasil se declara formalmente um Estado de Direito, tem Constituição, uma grande estrutura de órgãos técnico-jurídicos e impressionante quantidade de normas. Isso basta? A resposta é negativa. Para que o Estado de Direito seja efetivo, não é qualquer tipo de norma ou de processo decisório que serve.

Infelizmente, a preocupação com isso entre nós ainda é baixa. Pior: há gente demais lutando para aumentar e manter a miscelânea jurídica.

Uma ponta de nossos problemas está nos desenhos normativos. Reformas em leis e regulamentos são propostas todos os dias, mas dificilmente a prioridade é fazer regras operacionais, gerais, simples e claras.

Normas sobre tributação e servidores públicos são ótimos exemplos. Em seus lobbies organizados, tanto as autoridades, como certas classes de contribuintes e de servidores, valorizam as confusões. O objetivo é, com base nelas, alimentar frenéticos cassinos jurídicos, em que, com luz favorável, operam interessados, profissionais jurídicos e autoridades, por meio de jogos repetidos, ou mesmo de manipulações. Quem sabe mexer as pedras pode obter ganhos pontuais impressionantes.

Reformas que racionalizem a tributação e o regime dos servidores poderiam acabar com muitas das vantagens injustas de quem atua na lógica da tavolagem. Mas são reformas difíceis: seus potenciais beneficiários, difusos, não se mobilizam para defendê-las. E a turma dos cassinos está sempre alerta para bloquear ou distorcer quaisquer reformas racionalizantes.

É exemplar o debate, havido neste ano de 2021, sobre uma possível PEC para a reforma do RH público. O governo, comprometido com certos lobbies corporativos, mandou ao Congresso uma proposta (a que, ironicamente, chamou de “reforma administrativa”) cujo resultado seria apenas aumentar a bagunça. Na tramitação na Câmara dos Deputados, carreiras policiais, entre outras, tentaram pendurar na PEC mais regras para ampliar vantagens. Nada a ver, portanto, com racionalização do RH público, que não teve defensores suficientes.

A outra ponta de nossos problemas está nos órgãos técnico-jurídicos: juizados, tribunais, ministérios públicos, controladores de contas, advocacias públicas, etc. Em tese, eles são capazes de proteger a coesão da ordem jurídica e diminuir o espaço da jogatina. Um meio é fixar precedentes operacionais, gerais, simples e claros, e depois segui-los em casos futuros. Mas, por muitas razões, vários desses órgãos não estão conseguindo evitar a vertigem: a avalanche de processos inviabiliza qualquer consistência decisória, muitas autoridades jurídicas tomaram gosto pelo poder e pelo voluntarismo, o debate jurídico foi sendo contaminado pela política, etc.

Dois exemplos mostram as distorções nessa ponta. Em 2018, o Congresso Nacional aprovou uma lei para incentivar a segurança jurídica (lei 13.655, a Nova LINDB), proibindo decisões baseadas em retórica genérica (art. 20), impedindo surpresas com interpretações retroativas (art. 24), obrigando que as autoridades respeitem as orientações vinculantes (art. 30) e assim por diante. Foi o que bastou para um grupo de ministros do Tribunal de Contas da União, acostumados a agir com outros valores, iniciar uma ruidosa cruzada contra a lei. Não conseguiram derrubá-la totalmente, como queriam, mas foi um episódio exemplar.

O outro exemplo vem do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Ministério Público (MP), e tem a ver com a aplicação da legislação previdenciária, que envolve milhões de pessoas. Recente pesquisa, realizada no mestrado profissional da FGV Direito SP pela juíza Luciane Merlin Clève Kravetz, sob orientação do prof. Rubens Glezer, mostrou de modo impressionante que nem o STJ tem se mostrado capaz de fixar precedentes gerais sobre as principais dúvidas previdenciárias, nem os membros do MP, que intervêm nos processos em “defesa da ordem jurídica”, têm mostrado preocupação com a consistência da jurisprudência. O resultado é que as instâncias inferiores ficam sem parâmetros estáveis para decidir os casos, a confusão jurídica se amplia e, como em um cassino, pessoas são incentivadas a ir à Justiça apenas para tentar a sorte.

A correção desses problemas, em suas duas pontas, vai exigir muito esforço e várias mudanças normativas. Mas o primeiro passo, nada trivial, é reconhecer que cassinos jurídicos existem, e fazem mal ao país. No debate eleitoral de 2022, teremos nova oportunidade de discutir nossos desafios jurídico-institucionais e de cobrar que os candidatos tenham posição a respeito.

Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-o-brasil-quer-combater-ou-incentivar-seus-cassinos-juridicos.html

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld