Entrevistas

BCs têm de evitar volta aos anos 70, diz Mesquita

Economista-chefe do Itaú avalia que, se crise se prolongar, pode atrapalhar controle da inflação no Brasil

Valor (publicado em 25/02/2022)

O Brasil tem vantagens em relação a outros países emergentes para aguentar o choque causado pela invasão russa da Ucrâia, já que é um grande produtor agrícola e não depende muito de petróleo importado. Mas, se a aversão a risco nos mercados globais se prolongar, poderá atrapalhar o Banco Central (BC) na tarefa de baixar a inflação para as metas.

Essa é a visão do economista-chefe do banco Itaú Unibanco, Mario Mesquita, que, como diretor do Banco Central em 2008, enfrentou os impactos da grande crise financeira mundial. Ele diz que os momentos são diferentes: agora, ocorre um típico choque de oferta e não um colapso da economia mundial.

Se os banqueiros centrais se descuidarem, alerta, é possível que se reviva o período inflacionário dos anos 1970. “O receituário clássico, em casos de choque de oferta, continua valendo”, diz. Ou seja, acomodar o impacto direto da alta de preços como energia e alimentos, mas agir com o juro para evitar que a inflação se espalhe para o resto da economia, com a deterioração das expectativas.

Pelos cálculos da equipe do Itaú Unibanco, a alta dos preços das commodities pode desfazer os ganhos com a queda recente da cotação do dólar. A queda do dólar de dezembro para cá, de R$ 5,50 para R$ 5,15, baixaria as projeções de inflação do banco para 2022 de 5,5% para 5,2%. Mas, com a alta de 10% no preços das commodities de ontem, essa projeção de inflação subiria para 5,8%. “O choque atrapalha a desinflação brasileira, ainda que seja cedo para dizer se isso vai se materializar”, afirma.

Diante desse quadro, “o cenário como um todo fica muito mais incerto”, incluindo a condução da política monetária pelo BC, num momento em que o mercado discutia quando o ciclo de aperto poderia acabar. “Dito isso, caso o choque de oferta se mostre fugaz, é plausível que a política monetária entre em rota de flexibilização em algum momento de 2023.”

Mesquita diz que a chamada rotação de carteiras que beneficiava o Brasil, com os investidores redirecionando aplicações em ações de tecnologia para emergentes, deverá ter uma pausa. “A rotação, no curto prazo, deve ser do setor de tecnologia americano para ativos de baixo risco, como Treasuries”, afirma.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor, concedida por escrito:

Valor: O Brasil parecia estar se descolando das tensões geopolíticas no Leste Europeu, pelo menos o dólar caía por aqui. A invasão da Ucrânia muda isso?

Mario Mesquita: Existe esse potencial, caso o conflito se mostre prolongado, e ocasione um aumento persistente da aversão ao risco em escala global. O Brasil até tem algumas vantagens, na atual conjuntura, perante outros mercados emergentes, pois não é um grande importador líquido de petróleo e é um grande produtor agrícola, mas um período prolongado de estresse nos mercados internacionais não deve nos favorecer.

Valor: É certo que a invasão da Rússia vai provocar uma aceleração da inflação global? Não há um impacto na atividade econômica, que mais adiante vai baixar a inflação?

Mesquita: Em um primeiro momento, o que observamos é um novo impulso inflacionário, seja pela elevação dos preços de energia, e também commodities agrícolas, como trigo e milho. Isso vai atingir uma economia mundial que já estava lidando com um problema inflacionário, em especial nos EUA e em economias emergentes, um cenário parecido com o observado no início dos anos 1970. Em um momento de alta incerteza, é provável que as autoridades monetárias globais atuem com mais cautela no curto prazo, mas se elas acomodarem plenamente o choque mais recente, o risco de um descolamento mais persistente das pressões e expectativas inflacionárias vai aumentar. Creio que o receituário clássico, em casos de choque de oferta, continua valendo, isto é, as autoridades acomodam o efeito primário, mas reagem, reajustando a postura de política monetária para combater efeitos secundários, sobre as expectativas. A necessidade de reação tende a ser maior em economias com taxas iniciais de inflação mais elevadas e expectativas menos ancoradas.

Valor: Há um risco de voltarmos ao mundo dos anos de 1970, de inflação muito alta, com esse choque nos preços de energia em cima de choques de preços da pandemia?

Mesquita: Sim, em especial se os banqueiros centrais não zelarem pela ancoragem das expectativas de forma adequada.

“Em um primeiro momento, a classe de ativos [de economias emergentes] como um todo tende a perder ‘appeal’

Valor: Como esse esperado novo impulso na inflação vai afetar o Brasil? Qual deve ser a reação esperada do Banco Central do Brasil, nesse quadro de mais inflação global, mas com menos crescimento?

Mesquita: Pode adicionar pressões inflacionárias, em especial se o a cotação do real ante o dólar não acompanhar a alta dos preços de commodities. A queda do dólar, isoladamente, poderia ter levado a revisões baixistas das projeções de inflação, mas a elevação do preço das commodities atua na direção oposta. Segundo os economistas do Itaú, com o dólar em R$ 5,15, a projeção de inflação para 2022 cairia para 5,2%, nós temos 5,5%. Mas, mesmo com o câmbio a R$ 5,15, caso as commodities mantenham a alta observada hoje, de cerca de 10%, a projeção de inflação nesse ano subiria para 5,8%, com impacto de cerca de 10 pbs sobre a projeção de inflação para 2023, via inércia. Iria de 3,5% para 3,6%, se distanciando mais da meta, de 3,25%. Ou seja, o choque atrapalha a desinflação brasileira, ainda que seja cedo para dizer se isso vai se materializar, dada a incerteza do cenário.

Valor: Os mercados já estavam tateando para adivinhar quando o ciclo de alta de juro por aqui poderia acabar. O fim do aperto ficou mais incerto?

Mesquita: Sim, o cenário como um todo parece mais incerto.

Valor: Quando o sr. estava no BC, enfrentou uma grande crise, e a reação foi manter a política austera num primeiro momento, o que impediu que as expectativas fugissem de controle. Mas depois o BC cortou os juros, olhando a economia interna. Podemos ter algo parecido?

Mesquita: Não parece que estamos diante de um colapso da demanda e da atividade global como o que se seguiu à quebra da Lehman [Brothers]… Trata-se mais de um choque de oferta que atinge uma economia mundial com bolsões inflacionários. Na crise da Lehman, o desequilíbrio trocou de sinal muito rapidamente, agora o cenário parece distinto. Dito isso, caso o choque de oferta se mostre fugaz, é plausível que a política monetária entre em rota de flexibilização em algum momento de 2023.

Valor: O BC brasileiro já vinha subindo os juros, que chegaram a dois dígitos. Isso nos oferece alguma proteção contra o choque criado pelo conflito na Ucrânia?

Mesquita: O patamar de taxa de juros favorece o BRL [cotação do dólar ante o real], mas o aumento da busca por ativos de menor risco, a fuga para a qualidade, atua na direção oposta. Taxa de juros mais alta, assim como a disponibilidade de reservas internacionais, ajudam a mitigar o impacto de choques externos sobre ativos brasileiros, mas não por completo, e sempre dependendo da intensidade do choque.

Valor: A tese de realocação de carteiras de ações americanas de tecnologia para bolsas emergentes subvalorizadas, que estava contribuindo para valorizar a taxa de câmbio no Brasil, está em xeque?

Mesquita: Em um primeiro momento a rotação deve ser interrompida, até porque a Rússia é um mercado emergente, e a classe de ativos como um todo tende a perder apelo. A rotação, no curto prazo, deve ser do setor de tecnologia americano para ativos de baixo risco, como Treasuries. Se a incerteza recuar, é possível que retorne a rotação para os emergentes.

Valor: Qual é o recado que a queda dos juros dos títulos do Tesouro americano de 10 anos transmite? É pura aversão a risco e fuga para ativos de mais qualidade ou as Treasuries mandam recado para o Fed de que o aperto monetário nos Estados Unidos, se houver, terá prazo curto, porque pode haver uma virada?

Mesquita: Creio que os dois efeitos devem estar ocorrendo. Acho que a aversão ao risco deve ser mais importante, porque a economia americana vinha em um ritmo forte, acima do potencial, e o choque não parece que será suficiente para mudar isso.

Valor: A equação, para o banco central americano, é diferente da situação do BCE na Europa, que está mais próxima do conflito?

Mesquita: É diferente. A inflação está mais alta nos EUA, em especial se consideramos núcleos, e os salários estão subindo mais rapidamente. Além disso, o efeito do conflito sobre a confiança tende a ser maior nas regiões vizinhas do que nos EUA. Com isso, o espaço para postergar a normalização da política monetária é maior para o BCE que para o Fed.

Valor: Os analistas procuram paralelos com a invasão da Crimeia ou do Kuwait, nos 1990. É possível traçar paralelos, quando se fala sobre impactos nos mercados e nas economias?

Mesquita: A busca por paralelos é natural. O mais provável é que, como as crises anteriores, esta também acabe se mostrando temporária, e, depois de algum impacto inicial, os mercados e a economia mundial retomem suas tendências prévias. Mas a incerteza ainda é intensa e os desdobramentos geopolíticos de médio e longo prazo podem ser bastante relevantes.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita