Entrevistas

Carlos Ari Sundfeld: ‘PEC do Quinquênio é estapafúrdia sob todos os aspectos’

Professor da FGV Direito SP diz que Senado joga por terra debate sobre racionalidade do sistema de remuneração do funcionalismo

JOTA

Há uma semana, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a PEC do Quinquênio (PEC 10/2023), que concede adicional por tempo de serviço de 5% a magistrados, promotores e procuradores da República da ativa, além de outras carreiras, a cada 5 anos. A proposta já é discutida pelo plenário da Casa.

Em jogo não está apenas o impacto fiscal, que o Executivo calcula em mais de R$ 40 bilhões. A proposta, na avaliação do professor Carlos Ari Sundfeld, titular da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), também vai na contramão de todo o debate que se faz sobre a racionalidade da remuneração do serviço público.

Em entrevista ao JOTA e à newsletter Por Dentro da Máquina, Sundfeld explica ainda as dificuldades do governo para lidar com esse impasse e analisa os riscos associados a um possível atraso na votação da lei de cotas no serviço público, que também tramita no Senado. O professor trata ainda dos avanços e retrocessos na agenda da efetividade do Estado e reconhece que o esforço necessário para a reorganização de carreiras é equivalente àquele feito para aprovar o Plano Real, há 30 anos. A seguir, a íntegra da entrevista.

O atual contexto é favorável para uma transformação do Estado que melhore a percepção da sociedade sobre o funcionalismo?

De um ponto de vista, sim. Há muita cobrança por melhoria da aplicação dos recursos, do custo-benefício da aplicação dos recursos, da melhoria dos serviços em si. Então, esse é um tema sobre o qual as pessoas se sensibilizam. Até a aparição desse assunto no Congresso, de tempos em tempos, mostra isso. Mas, de outro lado, as condições políticas mais objetivas não são favoráveis porque todo esse esforço vai acabar envolvendo aprovação de normas, ou constitucionais ou legais. Isso exige negociação com os partidos.

Há muita pulverização política, e o custo da negociação é alto. Por quê? Porque existe um lobby muito forte das pessoas que perdem com a reestruturação de carreiras. Pessoas físicas que já estão na administração pública e organizações que, de alguma maneira, se beneficiam do modo como o Estado está estruturado. Esse segundo fator hoje é mais forte do que o primeiro, o que gera um certo pessimismo com relação ao momento.

Nesse ambiente, no qual se insere o avanço da PEC do Quinquênio (PEC 10), o senhor vê espaço para discutir a racionalidade do sistema de remuneração?

Não parece provável. As atitudes do Congresso, levando adiante esta PEC 10, que é para a elite do funcionalismo público no Brasil, a elite jurídica, com vantagens automáticas em função da passagem do tempo, cheira como uma provocação.

No fundo, é muito fácil para os parlamentares fazerem esses acenos simpáticos para as carreiras de elite porque, afinal de contas, isso pode trazer dividendos políticos nas dificuldades que eles têm e que o mundo jurídico pode ajudar a amenizar… Então, eles usam isso e criam para o governo um ônus de se contrapor a isso. É um tipo de medida completamente estapafúrdia sob todos os aspectos. Você vai lá, aumenta para a elite automaticamente, que é a coisa mais errada que pode existir, e coloca isso na Constituição, que é o pior possível.

Então, é uma indicação de que o Congresso está fazendo provocações ao governo. E o governo teria que responder a isso com esforço político, que ele tem dificuldade de fazer por conta de uma base política frágil. Mas também essa talvez seja a razão da provocação, já que o governo tem as suas próprias dificuldades de discurso político para lidar com propostas de reforma ligadas à carreira. Os partidos que apoiam o Planalto têm base sindical muito forte no serviço público. E, para esse governo, certamente é desafiador conseguir convencer as suas bases sindicais de que chegou o momento de reorganizar as carreiras. Isso é um paradoxo, em função da necessidade de aumentar a igualdade no serviço público. O paradoxo é: são partidos de esquerda que lideram a coalizão governamental, que têm um discurso correto de igualdade para todas as políticas sociais. Mas, no que se refere à política salarial dentro da administração pública, isso exigiria um esforço de combate às altas remunerações para que se criasse uma maior proximidade entre o piso e o topo.

E é óbvio que uma das maneiras de fazer isso é reorganizar as carreiras, mudar critérios de promoção, etc. Esse é um problema, um conflito interno do governo que faz com que ele fique paralisado diante da provocação do Congresso Nacional, do Senado especificamente. A Câmara, não exatamente neste ano ou no ano passado, mas antes, foi mais ativa. Ela aprovou o projeto de lei dos supersalários, a versão que foi para o Senado já bastante negociada, inclusive. Quer dizer, algo que importaria em avanços, mas era razoavelmente palatável até para as carreiras de elite, que são apanhadas por ele. A Câmara fez um esforço e aprovou o projeto de lei dos concursos públicos. E mandou para o Senado. E, no Senado, não anda. Desde o ano passado, o Senado nada faz. E aí, o Senado sai com essa PEC, que é uma provocação clara ao governo. Estou falando de política, que não é muito a minha área, mas é claro que eles estão explorando a fragilidade que vem desse paradoxo interno da esquerda.

“Todo o debate que tem sido feito é em torno da necessidade de criar mecanismos de avaliação de desempenho que sejam críveis, que sejam justos para os servidores. Aí vem o Senado e joga tudo isso por terra, dizendo para a elite do serviço público brasileiro do Brasil: ‘eu vou colocar na Constituição o direito de obter as suas promoções apenas por tempo de serviço’”.

Antes de aprovar a PEC 10, o presidente da CCJ, Davi Alcolumbre, chegou a dizer que haveria espaço para o avanço do PL dos supersalários e atrelou as duas coisas. Existe essa equivalência?

Não, isso é um discurso para pessoas muito desinformadas. Está sendo feito para quem não sabe nada. Por que é totalmente incompatível? Porque o projeto dos supersalários trata do que se chama de extrateto. Ou seja, das vantagens que se obtêm por meio de indenizações e que fazem com que se supere o teto. Então, esse é o tema desta lei.

Por que ela é importante? Porque ela pega justamente essas corporações mais poderosas, que têm muitos recursos e bastante autonomia financeira para criar novas indenizações, fazer novas interpretações que fazem com que as pessoas fiquem acima do teto. Pois bem, o Senado não mostrou até agora nenhuma disposição de tocar isso. O projeto já está bastante avançado nas negociações políticas, além da qualidade. Esse projeto precede qualquer outra discussão sobre a tal PEC 10.

Mas aí eles vêm no Senado com essa PEC 10, cujo objetivo é aumentar a remuneração base das carreiras de elite. Ninguém está falando do extrateto. Então, a PEC 10 é para aumentar o teto, essa que é a verdade. E colocando na Constituição de uma forma que é terrivelmente perversa. Por quê? Porque todo o debate que tem sido feito, que atravessa o governo, talvez não com a força necessária, mas que atravessa o governo, é em torno da necessidade de criar mecanismos de avaliação de desempenho que sejam críveis, que sejam justos para os servidores, e que permitam migrar de um sistema de aumento de remuneração por tempo de serviço para um bom sistema de avaliação de desempenho. Aí vem o Senado Federal e joga tudo isso por terra, dizendo para a elite do serviço público brasileiro do Brasil: ‘eu vou colocar na Constituição o direito de obter as suas promoções apenas por tempo de serviço’.

Quer dizer, é uma coisa absolutamente contraditória. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. E, se fosse verdadeiro, apesar da contradição absoluta, era o correto aprovar o projeto de lei do supersalário primeiro, e não ficar apostando numa emenda constitucional para aprovar depois. É óbvio que isto é mentira, para usar uma expressão sincera. Mentira que é jogada para tentar enganar as pessoas.

A PEC 10 desmoraliza a existência do teto constitucional?

Sem dúvidas. O que se está procurando fazer é forçar o teto. Tentando forçar o teto, de modo que, se essas vantagens são dadas, o teto não pode permanecer como está. Se elas são colocadas na Constituição, não pode permanecer. E o que se vai querer fazer é aumentar o teto para poder refletir todos os ganhos, e aumentar o teto para todo mundo. Então, no fundo, isso é desmoralizar o teto. É um esforço completamente contraditório ao de dar alguma racionalidade ao sistema de remuneração. E é surpreendente o que o Senado Federal está fazendo. Eles estão acenando para a elite do país, a elite que mais ganha no país, que tem remunerações muito altas, que tem remunerações muito além do que o próprio mercado privado paga para funções jurídicas. Então, o Senado Federal está se esforçando para aumentar a remuneração da elite, quando nós temos um desafio de conseguir pagar para quem está nos serviços sociais da ponta uma remuneração que seja justa, minimamente atrativa para que os serviços de educação, saúde e assistência social sejam bons. Quer dizer, é algo completamente contraditório, absolutamente indefensável.

“Não há alternativa senão um esforço sincero e radical no seguinte sentido: a União, por exemplo, que pode puxar os debates, precisa propor ao Congresso Nacional um programa de reorganização das carreiras. Não é fácil. Não é fácil você fazer esse trabalho de reorganização, mas é possível propor um programa.”

Olhando no detalhe do orçamento, é correto dizer que esse dinheiro faltaria para a reorganização geral das carreiras?

Sim. Se você olhar o tamanho do orçamento do Poder Judiciário, do Ministério Público brasileiro, e depois for examinar proporcionalmente o quanto se gasta com a advocacia pública, com a Defensoria e mesmo com as carreiras policiais de elite, e compara com padrões internacionais, você percebe a distorção impressionante que existe no Brasil. Portanto, não é apenas que se está pagando demais para carreiras pequenas. Não são pequenas do ponto de vista do impacto orçamentário. O impacto é gigantesco. Se você faz a comparação internacional, você percebe isso.

É evidente que há um limite para as despesas de pessoal, inclusive estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, porque é preciso adequar os diversos compromissos do poder público. Previdência é pesadíssima. Não só a Previdência dos servidores públicos, mas a previdência privada, que é um serviço social absolutamente fundamental; a prestação de serviços de educação, de saúde… enfim. Nós temos pressões orçamentárias para dar conta do fundamental programa social brasileiro, que fizeram com que se estabelecesse um limite total para o gasto pessoal. Não foi por nenhuma visão maldosa contra o serviço público. Pelo contrário: é justamente uma visão de valorização do serviço público globalmente. Precisa ter dinheiro para dar alimento para as crianças na escola, para comprar remédio, para equipar os hospitais.

Se as carreiras de elite aumentam cada vez mais a parcela que do total de despesas de pessoal, o que se está fazendo? Está tirando do restante. E não é por acaso que carreiras, mesmo de nível superior, com menor remuneração, se tornam um pouco atrativas. Então, quando você olha nos hospitais públicos, a dificuldade de reposição de pessoal na área médica… a remuneração dos médicos é incompatível. Pode colocar no concurso. Aí, conseguem que meia dúzia tomem posse, ficam 6 meses e vão embora. Por quê? Porque estão com salário achatado.

Evidentemente, quando você pega as carreiras que têm menos ainda poder de pressão, como é o professor do ensino fundamental, você vê o grau de perversidade que o nosso sistema tem. E está completamente errado. No fundo, toda discussão sobre as vantagens das carreiras de elite são feitas sempre falando do passado. ‘Ah, porque nossos aumentos estão congelados há não sei quanto tempo’. Vamos falar de valores brutos? Quanto que as pessoas recebem, somando todas as parcelas de remuneração, inclusive as indenizações, vamos comparar com os assistentes sociais que estão lá na ponta, que estão fazendo serviços fundamentais.

Tem bala de prata para lidar com reorganização de carreiras e reorganização da remuneração do servidor público?

As balas de prata foram tentadas historicamente, inclusive com normas jurídicas. Norma do teto na Constituição, por exemplo, que é uma tentativa de resolver as distorções que vão sendo criadas pelas milhares de leis nos milhares de municípios, nos estados e na União. Você pode ter um teto geral e aquilo pode criar um achatamento meio irracional, mas pelo menos você tem um limite. Não funcionou. Nenhuma das versões funcionou como devia porque tem um certo efeito de contenção, mas justamente quem consegue furar é a elite, uma coisa bastante perversa. Então, essas regras gerais que tentam enfrentar tudo não solucionam.

Não há alternativa senão um esforço sincero e radical no seguinte sentido: a União, por exemplo, que pode puxar os debates, precisa propor ao Congresso Nacional um programa de reorganização das carreiras. Não é fácil. Não é fácil você fazer esse trabalho de reorganização, mas é possível propor um programa. Como se propõe o arcabouço fiscal, que é um programa que se aprova por normas jurídicas que vão condicionando as reformas que você vai fazer depois para aumentar a arrecadação e diminuir as despesas, é possível fazer isso na área do serviço público.

“Qual é o objetivo? É diminuir o número de carreiras, é implantar avaliação de desempenho como um único critério de promoção. Se é um plano, se está estabelecido, o governo está assumindo um compromisso com isso. Tem que falar com a população, né? Propor isso é uma loucura? Não é. O Plano Real foi isso. Acho muito difícil fazer isso na atual situação, mas, de qualquer modo, não há outro modo de fazer.”

Por exemplo, se o governo manda um projeto de lei estabelecendo que não haverá mais promoções por antiguidade, previstas nas leis das carreiras federais, até que termine um esforço de reforma, que vai ocupar os próximos três anos, e o Congresso Nacional vai ter que aprovar. Qual é o objetivo? É diminuir o número de carreiras, é implantar avaliação de desempenho como um único critério de promoção. Se é um plano, se está estabelecido, o governo está assumindo um compromisso com isso. Tem que negociar com o Congresso, tem que ser claro. Tem que falar com a população, né? Isso é irracional? Propor isso é uma loucura? Não é. O Plano Real foi isso. Fizeram um programa, o programa começou a funcionar e exigiu, claro, complementações legislativas que tomaram muitos anos, que, aliás, foram além do governo Fernando Henrique. Mas havia uma sinalização clara e um esforço político para convencer a população a apoiar isso e cobrar do mundo político a aprovação das medidas que viriam depois.

Então, essa seria uma maneira. E aí nós temos que tomar medidas importantes. Uma deles é proibir as promoções por antiguidade. Acabar com os aumentos reais de remuneração, salvo nos níveis inferiores. E você pode também colocar uma regra proibindo a admissão de novas pessoas nas carreiras, até o fim da reforma, para impedir que haja uma espécie de sabotagem por meio das pressões de novas admissões. Aí, principalmente, surgiu a urgência que você tenha o trabalho temporário.

Agora, tudo isso que eu estou mencionando aqui é algo que corresponde à aprovação do projeto de lei da URV, que foi o antecedente do Plano Real. E aquilo exigiu um compromisso do governo, uma negociação. Acho muito difícil fazer isso na atual situação, mas, de qualquer modo, não há outro modo de fazer. Não é uma bala de prata, propriamente. É um grande esforço de reforma. Esforços anteriores de grandes reformas no Brasil mostram que isso é viável.

Em outro tema, o PL das Cotas no Serviço Público, o governo teme que a proposta não seja aprovada antes de 9 de junho, quando a atual legislação perde vigor. Se ocorrer isso, esse vácuo jurídico pode interferir em nomeações dos futuros servidores que serão aprovados no Concurso Unificado?

Olha, isso vai gerar um problema que nós chamaríamos de forma complicada de direito intertemporal, de saber se o fim da vigência da lei afeta a nomeação para os cargos cujos concursos já se iniciaram e que talvez possa ser resolvido com o reconhecimento de que as regras sobre as quais foi aberto o concurso têm que ser observadas para que as nomeações tenham resultado. Então, isso é um problema mais intertemporal e transitório.

Portanto, não será o fim do mundo se a lei não for aprovada (no prazo), como seria correto, ou discutida profundamente, sendo readequada segundo a opinião do Congresso, no período necessário. Agora, o que é ruim é que não haja um debate de qualidade no Congresso. O que eu estou chamando de debate de qualidade? Um debate sobre as vantagens e desvantagens do programa de cotas, suas limitações e as dificuldades operacionais. Isso é importante. Como debate, seria bastante importante.

“O programa de cotas tem resultado e está tendo dificuldade de ter um ambiente de debate adequado para uma política tão importante, que já produziu resultados relevantes, mas ainda muito iniciais. Nós não vamos conseguir, num prazo tão curto, encerrar esse programa. Ele deve ser temporário. Mas é preciso que a decisão seja feita com qualidade. Então, é importante cobrar do Congresso Nacional uma discussão séria sobre isso”.

Acho que há um reconhecimento generalizado que nós temos um problema de inadequação da força de trabalho no serviço público, que não tem as características da sociedade brasileira. O que é ruim do ponto de vista da progressão social, daqueles que aspiram trabalhar na administração pública, mas não é só para isso, não. É ruim porque a diversidade da administração é fundamental para que nós tenhamos visões de sociedade diferentes dentro da gestão pública. Isso é algo praticamente consensual entre as pessoas quando fazem as discussões fora das arenas, dos holofotes,. As pessoas entendem isso… Mas aí vem os problemas práticos, saber como você mede a dose, qual é a melhor solução para cotas, se você vai fazer cotas sociais, se você vai fazer cotas raciais, como é que você decide quem se beneficia ou não.

Tem o problema da autodeclaração, que pode funcionar muito bem no Japão, que tem um certo ethos de palavra dada, etc., que faz com que as pessoas não tendam a dizer coisas nas quais não acreditam, mas no Brasil é diferente. Aí, então, isso leva à criação de comissões para fazer uma verificação se a pessoa fez uma declaração correta ou não. E aí gera um problema de usar o termo de tribunal racial um pouco injustamente.

Mas é uma dificuldade se você não pode se valer apenas na autodeclaração. Você tem que ter alguma comissão que vai decidir isso. Bom, mas aí tem o problema de saber quais são os critérios. Qual é o critério? É a demonstração de uma origem que tem a ver com alguma comunidade específica que tem que demonstrar? É a cor da pele? É a forma do rosto? O que interessa? A história da família? Então, esses detalhes operacionais importam.

Eu acho que isso tudo o Congresso Nacional poderia discutir. É legítimo que discuta. Ele poderia querer contribuir com isso. E poderia inclusive gerar acordos. Lamentavelmente, por conta da polarização política, o que tem aparecido na resistência ao andamento do projeto de lei é muito um discurso fácil de crítica vulgar às cotas ou um discurso fácil de crítica também vulgar àqueles que querem discutir os aspectos operacionais ou qual é o melhor critério. Então, isso tem dificultado uma discussão nacional no Congresso. Entendo que o governo fez uma análise séria do assunto e não é uma coisa que esse governo inventou agora.

O programa de cotas tem resultado e está tendo dificuldade de ter um ambiente de debate adequado para uma política tão importante, que já produziu resultados relevantes, mas ainda muito iniciais. Nós não vamos conseguir, num prazo tão curto, encerrar esse programa. Ele deve ser temporário. Mas é preciso que a decisão seja feita com qualidade. Então, é importante cobrar do Congresso Nacional uma discussão séria sobre isso.

Agora, quem participa de concurso pode, eventualmente, levar o tema ao Poder Judiciário. Esse risco é efetivo?

Sim. O tema do concurso foi muito judicializado no Brasil, há muito tempo. Muito antes da Constituição de 1988, inclusive. O Judiciário sempre foi muito sensível e aberto a receber ações sobre isso em relação a alguns aspectos mais objetivos. Então, a judicialização tem sido bastante intensa e ela foi incentivada nas últimas duas, três décadas por alguns fatores. Um deles foi a criação de uma grande máquina de cursinhos, que, com o online, tomou dimensões gigantescas. Isso cria perigos, naturalmente.

Como se resolve isso?

Eu acho que o governo tem que ser radical, em dois sentidos. Primeiro, ele tem que tomar uma posição muito firme em relação a isso. Não deixar essa discussão jurídica ser tratada assim como uma discussão menor para ser feita lá num órgão muito técnico, muito específico. O chefe do Poder Executivo que tem que tomar partido. Vamos fazer alianças políticas, com cerimônias públicas, inclusive, para dizer: ‘nós estamos aprovando o entendimento em relação a essa matéria e nós vamos defendê-la a todo custo, e peço para a população que entenda a importância disso’.

Esta tomada de posição influi no Judiciário, porque faz com que os juízes percebam que há um debate sendo feito com bastante consistência. Isso é uma primeira coisa importante. A segunda coisa importante é a seguinte: se a litigiosidade se torna muito séria, a solução é suspender as nomeações. E vamos ver como é que nós resolvemos o problema da falta de pessoal.

Observando o conjunto de ações relacionadas à transformação do Estado, se o senhor fosse elencar os temas que ainda estão pendentes, o que apontaria como prioritário?

O Estado deveria focar em experiências que já estão em curso e que eu poderia chamar de relativamente informais do ponto de vista jurídico, mas que já se espalharam pela administração e que mostram bons resultados. Um esforço para legitimar essas experiências do ponto de vista jurídico e também do ponto de vista simbólico, quer dizer, reconhecer que por aí é um bom caminho de reformas. Por quê? Porque aí o custo tende a diminuir, o custo político de aprovação. Uma experiência recente de São Paulo mostra isso, mas eu queria mencionar um exemplo mais nacional, que é do trabalho temporário na administração pública.

A Constituição, por exemplo, tem uma válvula para um trabalho temporário na administração pública. Uma válvula para que não se aplique o regime de trabalho dito estatutário, que é mais caro, mais formal, mais complexo, para toda a administração pública. É a autorização para que a administração pública faça contratos por tempo determinado. Por muitas razões, isso foi visto como excepcional pela literatura jurídica e mesmo pelos tribunais, em muitos momentos, devido à preocupação em se evitar uma desmoralização da ideia de serviço público profissional.

No entanto, a realidade dos serviços sociais impôs, sobretudo para os estados e municípios, a utilização muito larga de trabalho temporário. Então, a educação é o exemplo mais notável nos estados e nos municípios também. Estados com performances excepcionais, do ponto de vista do aprendizado dos alunos, como o Ceará, têm um índice muito alto de utilização de trabalho temporário na força de trabalho de professores. O Espírito Santo deu um salto gigantesco no ensino médio, com um percentual de uso do trabalho temporário muito alto. Nesses estados, o trabalho temporário se mostrou absolutamente indispensável para fazer frente às demandas de educação, que tem peculiaridades que de fato justificam esse tipo de trabalho.

No entanto, a nossa legislação e o próprio discurso governamental nos estados e municípios é muito ambíguo em relação a isso. E o esforço do governo federal, como alguém que pauta os grandes debates, para normalizar e até melhorar os instrumentos, é nenhum. Então, essa é uma pauta que teria, eu diria, muita chance de obter adesão política, porque os estados e municípios usam largamente. E os resultados positivos da educação são reconhecidos pela população.

No caso do governo federal, essa experiência de revisar o Decreto-Lei 200 aponta para o fortalecimento das fundações estatais de direito privado, mirando na administração indireta. É ali que pode ter alguma capacidade de oxigenação nesse tema?

Sim, sim. A solução mais óbvia para uma reforma na administração pública, na área social, especialmente na União, no sentido amplo, que envolve educação superior, é a recuperação da figura das fundações estatais de direito privado. Por quê? Porque metade da força de trabalho da União está na área de educação ou de pesquisa. São os institutos, são os institutos federais, são as universidades e são alguns institutos de pesquisa. É metade da força de trabalho da União. Não são serviços que dependem de uma fórmula jurídica do tipo agência reguladora… E que precisam de mão de obra de uma maneira muito frequente, tem uma certa flutuação e o dinamismo que uma fundação estatal de direito privado pode dar, e a autonomia que ela pode ter se compatibiliza bem com o modelo de educação.

Isso seria, portanto, uma mudança importante no plano federal, que o governo poderia sinalizar ao rediscutir o Decreto-Lei 200. ‘Olha, nós vamos investir na recuperação dessa figura. Vamos regulamentá-la, vamos editar uma lei para regulamentar a figura da fundação estatal de direito privado e depois vamos discutir quais serão os serviços que, aos poucos, serão transformados de modo a se abrigar nesse modelo’.

Não é fácil transformar, porque cada universidade é autônoma, os institutos são autônomos, tem que construir confiança, etc. Tem que respeitar a autonomia, que é um fator importante, né? Uma razão de sucesso parcialmente desses institutos e universidades, etc. Bom, então isso é uma aposta possível, conhecendo inclusive um pouco do pensamento de algumas pessoas do governo federal. O modelo da fundação estatal de direito privado é algo que pode vir a partir da revisão do Decreto-Lei 200. Esse eu diria que é o termo, inclusive, prioritário nesse esforço.

“A digitalização vem produzindo impactos muito positivos. Isso tem se mantido, e é algo positivo. E esse governo fala muito, que valoriza essa reforma. É uma reforma silenciosa, mas é muito importante. O que é desafiador para o governo, para os governos, é se adequar à nova administração pública digitalizada. A estrutura que já existe de secretarias, ministérios, departamentos, autarquias e carreiras foi toda pensada para outras épocas. Tem uma certa fossilização que ocorre nas administrações públicas”.

E o que que está bem encaminhado?

Olha, eu acho que há esforços de digitalização no governo federal, sobretudo, que é mais positivo do ponto de vista da reorganização do modo como se presta serviços no Brasil. Isso é uma transformação enorme. Por exemplo, o INSS, o acesso ao maior serviço público do Brasil, né? O acesso de toda a população ao aplicativo. Receita Federal é o exemplo mais antigo. O PIX, que não é exatamente para a fruição do serviço do próprio Estado, mas é um serviço do Estado que acaba sendo prestado pela iniciativa privada. Enfim, há uma série de esforços que vem atravessando aí muitos governos, né?

A digitalização vem produzindo impactos muito positivos. Isso tem se mantido, e é algo positivo. E esse governo fala muito, que valoriza essa reforma. É uma reforma silenciosa, mas é muito importante. O que é desafiador para o governo, para os governos, é se adequar à nova administração pública digitalizada. A estrutura que já existe de secretarias, ministérios, departamentos, autarquias, carreiras foi toda pensada para outras épocas. Tem uma certa fossilização que ocorre nas administrações públicas. Então, um grande esforço de reformatação seria necessário para fazer essa adequação. Inclusive nas carreiras, que aí é um desafio maior. Essa experiência de digitalização já é bem sucedida.

Por fim, em relação ao PL dos Concursos, que tramita no Senado. O senhor é cético quanto ao bom encaminhamento dessa matéria no Congresso, embora se busque recentemente alguns acordos importantes, inclusive com o movimento sindical, para fazer a coisa andar?

Eu sou otimista. Acho que o governo teve dificuldade no início em se posicionar porque, enfim, tinha muitas circunstâncias, inclusive porque precisava analisar o tema dentre outros que estão lá na pauta. Porém, mais recentemente, a ministra Esther Dweck foi clara no sentido de que o governo apoiava, sim, e pretendia atender alguma preocupação do movimento sindical com uma questão de redação. Mas, enfim, isso é uma questão positiva. E o projeto de lei foi aprovado na Câmara com grande consenso. Lá, houve uma negociação sobre as características desta lei. Os projetos de lei sobre concurso existem no Congresso há muito tempo, e não há nada no Senado que me parece que seja oposto a isso. O que eu acho que está faltando é um certo movimento de governadores em relação a isso. Os governadores estão lá com suas próprias agendas, e não houve até agora um esforço deles. E eles poderiam ser importantes. Por que eles são importantes? Porque já estão ocorrendo nos estados e também nos municípios algumas experiências importantes de modificação de concurso público, por exemplo, na área de educação.

Por incrível que pareça, mesmo nessa área, predominaram nas últimas décadas os concursos com provas de múltipla escolha, sem que houvesse sequer uma prova prática, uma prova didática para medir, enfim, o conhecimento, a experiência e a capacidade do professor se comunicar. Bom, isso começou a mudar nos últimos anos, nos últimos poucos anos, na verdade, mas começou a mudar com um esforço de alguns estados e municípios com incentivos, inclusive, de organizações não-governamentais, para construir concursos com provas didáticas. Então, o município de São Paulo está fazendo, o Ceará está fazendo… vários estados e municípios estão fazendo experiências bem-sucedidas de provas práticas, o que é óbvio, mas não se fazia, e é uma mudança importante. O problema é de possível judicialização, que até agora não ocorreu, mas a hora que a máquina da judicialização se voltar para isso, nós temos riscos.

Uma lei nacional faria a diferença. Na hora que se começar a levar os cargos de maior remuneração às experiências de provas mais de habilidades e competências, aí, evidentemente, cresce o incentivo para a judicialização, porque justamente são as carreiras que mobilizam os cursinhos mais caros. E isso seria muito importante para a reforma da qualidade da administração pública: ter concursos que resolvessem o problema da entrada e, mais do que isso, que sinalizassem como é que você faz a avaliação de desempenho das pessoas no exercício da função. É disso que se trata. Você pode fazer uma avaliação na entrada, mas depois você tem que fazer avaliações periódicas. Então, os governadores precisam se mobilizar um pouco nessa pauta e se alinhar ao Ministério da Gestão, que entendeu que isso provoca uma espécie de mudança cultural, além do apoio jurídico, mudança cultural de baixo custo político.

Como disse, é muito difícil você mexer nas carreiras. Mexer na entrada, na forma de concurso, tem um custo político muito menor. Eu falo dos governadores porque eles têm muita influência no Senado. Está faltando que, em uma reunião de governadores para tratar de temas tributários, por exemplo, gastem meia hora com esse tema. E eu acho que, se eles fizerem esse esforço, com certeza vão entender que é um caminho importante. O Senado precisa dessa pressão. Acredito que não haja resistência propriamente a isso entre os senadores. O governo federal precisa desse apoio dos governadores. E eu acredito que nós não estamos longe disso.

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