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A democracia brasileira conseguirá se autorreformar?

Folha (publicado em 12/03/2022)

Em entrevista à jornalista Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, publicada em 3 de janeiro, o ex-ministro da Fazenda, embaixador e ex-secretário-geral da Unctad Rubens Ricupero nos lembrou de que o regime político atual dá sinais de esgotamento.

Nas palavras do embaixador: “Um sistema nasce, vive e morre. Só não morre quando se autorreforma. Há sistemas que têm essa capacidade. Sem querer dar a isso um caráter fetichista. Os regimes brasileiros não duram mais do que 40 anos”.

Esse é o maior desafio de nossa sociedade. Conseguiremos reformar o sistema e fazer com que ele dê respostas às necessidades da sociedade? Desde 2013, o contrato social da redemocratização dá mostras de esgotamento. O contrato social da redemocratização —o desejo da sociedade expresso no texto constitucional de 1988, de construir no Brasil um Estado de bem-estar padrão europeu continental— gerou forte expansão da carga tributária e baixo crescimento da economia.

O foco na equidade e nos diversos programas de transferência de renda e seguros sociais reduziu muito a capacidade de investimento do setor público, principalmente em infraestrutura urbana. Os significativos ganhos privados, com a melhora das condições de vida e do ambiente doméstico, além do aumento do consumo de bens privados, não foram acompanhados por um avanço na oferta de bens de consumo coletivo.

O esgotamento da capacidade fiscal do Estado é o sinal mais claro do esgotamento de um sistema político, para empregar a expressão do embaixador Ricupero. Em 1962, Celso Furtado, nosso economista mais influente, ainda como superintendente da Sudene (viria a ser nomeado ministro do Planejamento no governo João Goulart ainda sob o Parlamentarismo, em setembro de 1962), escreveu no seu livro manifesto “A Pré-Revolução Brasileira”:

“Surgiu, assim, essa óbvia contradição que vivemos nos dias de hoje: exige a opinião pública do Estado o desempenho de importantes funções ligadas ao desenvolvimento econômico e social do país, mas, através de seus representantes, no Parlamento, essa mesma opinião pública nega os meios de que necessita o Estado para cumprir tal missão. A consequência prática, conhecemo-la todos: são os déficits do setor público e o seu financiamento com simples emissões de papel-moeda. O fato de que o Parlamento não capacite a administração para coletar os impostos de que necessita e ao mesmo tempo amplie todos os dias os gastos do governo em funções do desenvolvimento traduz claramente a grande contradição que existe presentemente na vida política nacional”.

Furtado enxergava com muita clareza o golpe militar de 1964 a caminho. E este arbitrou o conflito distributivo: entre 1964 e 1970, a carga tributária subiu nove pontos percentuais do PIB. Segundo cálculo recente da IFI (Instituição Fiscal Independente), o déficit primário estrutural da União —isto é, aquele já ajustado ao ciclo econômico— foi em 2021 de 0,5% do PIB.

Sob a hipótese de que os estados e os municípios equilibrem as suas contas, a União precisa apresentar superávit na casa de 2,5% do PIB. Assim, o próximo presidente, com o auxílio do Congresso Nacional, terá que promover um ajuste fiscal de 3% do PIB, aproximadamente R$ 270 bilhões. Trata-se de um desafio muito maior que o enfrentado por Lula em 2002 e bem próximo ao ajuste de FHC em 1999.

Se o próximo presidente eleito conseguir promover ajuste dessa magnitude —será por meio de uma combinação de aumento de impostos, corte de gastos e corte de subsídios—, o sistema político terá conseguido arbitrar nosso conflito distributivo sem quebrar o regime político.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2022/03/a-democracia-brasileira-conseguira-se-autorreformar.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa