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Daniel Gleizer: Após levar juro a terreno restritivo, BC caminha para ajuste fino

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Daniel Gleizer, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central e membro do Conselho Consultivo do Bretton Woods Committee além de aluno visitante da Columbia University, avalia que a opção do Banco Central por um ciclo mais longo de elevações de juros, ao invés de novas altas na magnitude das anteriores, e o começo de uma fase de ajuste fino, sugerem a tentativa de trazer a inflação de volta à meta, com o menor custo possível. No entanto, ressalta, a inflação global já afeta o Brasil e as medidas para contê-la são um prenúncio de uma forte desaceleração.

Sobre os impactos do ciclo de política monetária americano nas decisões no Brasil, Gleizer diz ter a sensação de que as taxas de juros nos Estados Unidos subirão mais do que a curva hoje precifica, dificultando ainda mais a condução da política econômica brasileira. “Posso estar enganado no meu prognóstico, mas estou seguro de que esta possibilidade deveria estar sendo contemplada com muita seriedade no Brasil”, afirmou.

A seguir, principais trechos da entrevista:

Broadcast – Em que medida a inflação no mundo pode ser importada pelo Brasil neste ano?

Daniel Gleizer – A inflação tornou-se um problema global. Para entendermos se ela pode ser importada pelo Brasil é importante analisarmos os seus principais determinantes, assim como os da inflação brasileira. A aceleração inflacionária mundial deriva de uma situação atípica na qual políticas de preservação da demanda agregada interagiram com uma intensa contração na oferta agregada. Do lado da demanda, resulta de políticas adotadas por bancos centrais e tesouros nacionais com o objetivo de proteger cidadãos e empresas dos efeitos brutais da pandemia. O objetivo – meritório, é importante enfatizar, apesar dos graves problemas de execução – era compensar a queda da demanda através da adoção de políticas monetárias e fiscais bastante agressivas. As políticas de transferência de renda para grupos particularmente vulneráveis e a adoção de taxas de juros próximas de zero, e até mesmo negativas, foram eficazes em conter rapidamente a queda da demanda agregada. Porém, simultaneamente, houve intenso choque de oferta: as políticas de distanciamento social, e no extremo, de lockdown, apesar de necessárias para fazer frente à crise sanitária, levaram a interrupções na produção e na distribuição de insumos, bens finais e várias modalidades de serviços, gerando uma queda abrupta na sua oferta.

Com a vacinação e o arrefecimento da pandemia as políticas de distanciamento social foram amenizadas, exceto na China que, com sua política de covid-zero, continua a adotar lockdowns localizados, e as restrições de oferta começaram a ser lentamente superadas. Mas este princípio de regularização teve vida curta. A invasão da Ucrânia pela Rússia gerou um novo choque, ao afetar a produção, distribuição e, consequentemente, os preços de commodities, principalmente de combustíveis e grãos, produtos nos quais a participação global das exportações destes dois países é muito relevante. Temos, assim, um novo choque de oferta global se sobrepondo a uma situação ainda bastante fragilizada do lado da oferta e aquecida do lado da demanda, reforçando os desafios da política econômica.

Broadcast – Como fica, nesse sentido, a ação da política monetária?

Gleizer – A política monetária tem um papel crucial na contenção das pressões inflacionárias agindo sobre a demanda agregada e, portanto, sobre os preços. O fato de ela ser incapaz de solucionar os gargalos nos processos de produção e impotente para reverter a queda na oferta global de commodities, não significa que ela é incapaz de lidar com a inflação, como argumentam alguns. A inflação não resulta do “lado da oferta agregada” ou “do lado da demanda agregada”. Ela resulta do descompasso entre oferta e demanda e a política monetária cumpre papel decisivo na correção deste desequilíbrio, atuando sobre a demanda agregada. A lentidão em Fed em reagir aos sinais crescentes de pressões inflacionárias contribuiu para que se estabelecesse na economia americana um excesso de demanda de tal magnitude que será muito difícil corrigi-lo com um pouso suave, entendido como o controle da inflação com um custo limitado em termos de redução de atividade e emprego.

Broadcast – Teremos, então, um “hard landing” global? E o Brasil?

Gleizer – Acho pouco provável que escapemos de uma forte desaceleração nos EUA e em outros países desenvolvidos, com efeitos sobre a atividade no mundo todo. Os determinantes da inflação brasileira pré-invasão da Ucrânia são semelhantes aos que falei há pouco. O aumento da inflação levou o Banco Central a elevar a taxa Selic com o intuito de produzir taxas de juros reais ex-ante capazes de contê-la. A guerra e seus efeitos foram a pá de cal na expectativa de que o problema era a apenas transitório e começaria a arrefecer. A moderação da atividade via política monetária, que já operava em modo restritivo, precisou ser intensificada devido a este novo desafio, às elevadas expectativas inflacionárias e aos elevados índices de difusão de aumentos de preços verificados no Brasil.

Broadcast – Mas o câmbio pode ajudar?

Gleizer – A apreciação cambial observada nos últimos meses, resultado do diferencial de juros vis-à-vis as taxas internacionais e, também, da melhora dos termos de troca, evidentemente, ajuda. Mas não a vejo como sustentável. O Fed parece decidido a apertar sua política monetária, o que deve contribuir para o fortalecimento do dólar. De fato, na sua reunião de maio o FED elevou a taxa básica de juros em 0,50 ponto porcentual e anunciou o começo da redução de seu balanço, vendendo os títulos de renda fixa que adquiriu ao longo do tempo. Ambas as medidas impactam a estrutura a termo das taxas de juros. Na sua coletiva de imprensa, Jerome Powell reiterou que novas elevações de 0,50pp na taxa básica de juros estão na mesa, mas reiterou que uma elevação de 0,75pp não é algo que o Comitê esteja considerando ativamente. Isto dependerá dos dados futuros e da avaliação do Fed sobre a taxa de juros neutra. Em casa, ainda padecemos da falta de um arcabouço fiscal confiável, que torna apenas transitória a melhoria observada nos resultados fiscais recentes. Finalmente as eleições adicionam uma outra camada de incerteza. Em suma, a inflação global já está afetando o Brasil e as medidas necessárias para contê-la prenunciam uma importante desaceleração econômica no final deste ano e no início do ano que vem.

Broadcast – O ritmo mais veloz de aperto monetário brasileiro pode ajudar de que maneira, considerando um Fed mais agressivo para controlar a inflação nos EUA?

Gleizer – O ritmo do aperto monetário brasileiro será calibrado pela avaliação do  desenvolvimento do amplo conjunto de indicadores que o Banco Central utiliza para balizar suas decisões. Dentre estes fatores figura o patamar e trajetória esperada das taxas de juros internacionais, principalmente as americanas, dados seus impactos sobre os fluxos de capitais, sobre a taxa de câmbio e a inflação. Como mencionei antes, o aumento do diferencial de juros frente aos EUA colaborou para a valorização do real e isto ajuda a conter a inflação dos bens tradeables. Mas a elevação mais intensa projetada para os juros americanos dificultará ainda mais a vida do Banco Central. Na reunião deste mês o Copom aumentou a taxa Selic em 100pp, para 12,75%a.a., em linha com o esperado, e indicou que deve promover nova elevação em junho, possivelmente de menor magnitude. O Comitê sinalizou que o ciclo de aperto se encontra em estágio avançado. A ata da reunião ainda não foi divulgada, mas parece que, depois de levar a taxa de juros para território restritivo, o Copom caminha para uma fase de ajuste fino.

Broadcast – O BC brasileiro vive um trade-off entre mais inflação e levar o país a uma recessão. Como equilibrar tal situação?

Gleizer – O Banco Central tem a missão de levar a inflação para a meta, minimizando os sacrifícios de produção e emprego ao longo do tempo. Este elemento temporal é fundamental. O objetivo não é assegurar a manutenção da produção e do emprego no curto prazo, mas, sim, criar as condições para que se obtenha o maior nível de emprego e produção ao longo do tempo, sem prejuízo da manutenção da inflação na sua meta. Não existe um trade-off constante e de longo prazo entre inflação e desemprego. Como mostra nossa história, a manutenção de estímulos em uma economia que sofre de um processo inflacionário intenso, não apenas perpetua esta inflação, mas contribui para a sua aceleração, com efeitos perversos sobre a produção e o emprego. Postergar a adoção de medidas corretivas tornará o remédio ainda mais amargo. O Banco Central demorou a reagir e acabou se defrontando com um novo choque de oferta e com condições financeiras internacionais mais desfavoráveis. Está, entretanto, comprometido em cumprir seu mandato e trazer a inflação de volta à meta, ainda que não neste ano. A opção por um ciclo mais longo de elevações de juros, ao invés de novos incrementos na magnitude das elevações, e o começo de uma fase de ajuste fino, sugerem a tentativa de trazer a inflação de volta à meta, com o menor custo possível. Veremos se isto será suficiente.

Broadcast – O desarranjo das cadeias de produção e o choque de commodities em razão da guerra russo-ucraniana traz consequências mais positivas do que negativas para o Brasil? Por quê?

Gleizer – Como mencionei há pouco, a guerra cria gargalos nas cadeias de produção e impõe um choque no mercado internacional de commodities, principalmente de combustíveis e alimentos. Este choque afeta de forma diferenciada países exportadores e países importadores de commodities, beneficiando os primeiros e prejudicando os segundos. O Brasil se tornou um grande exportador e, no curto prazo, pode se beneficiar desta mudança nos termos de troca. Mas precisamos levar em conta que este efeito pode ser transitório, pois parece elevada a probabilidade de que o impacto da guerra sobre o comércio internacional seja o de uma forte redução nas quantidades transacionadas, o que pode mais do que compensar o efeito da elevação dos preços. Ademais é preciso levar em conta seu impacto sobre a inflação e sobre a política monetária. A conduta tradicional é não responder aos choques primários de oferta, fazendo uso das bandas em torno da meta central de inflação, e evitar que esta elevação nos preços das commodities se dissemine e contamine os demais preços na economia. Isto é tão mais difícil de fazer quanto maiores forem os índices de difusão da inflação pré-choque, quanto mais intensa for a persistência inflacionária na economia e quanto mais elevadas forem as expectativas de inflação. No caso do Brasil de hoje todos estes fatores jogam contra. Ademais, no caso do Brasil, além do choque direto da elevação do preço dos grãos, temos o problema do gargalo na obtenção de fertilizantes, com forte impacto potencial sobre a agricultura brasileira. A política monetária já operava em modo restritivo antes da eclosão da guerra, mas sabemos que ela opera com defasagens longas. O choque torna ainda mais complexa sua calibragem. Creio que essas consequências negativas superam os benefícios de um ganho transitório dos termos de troca.

Broadcast – Difícil antever a dosagem correta do aperto…

Gleizer – A dosagem correta da elevação dos juros vai depender de muitos fatores, dentre os quais o impacto sobre os portfólios dos agentes econômicos da gradual eliminação das políticas monetárias não convencionais, que vinham sendo adotadas desde a crise de 2008. Vai depender, também, da evolução deste choque geopolítico e de suas consequências econômicas, algo muito difícil de prever. Sabemos, ademais, que o apoio da política fiscal é importante elemento a amparar a política de juros. Ela deve servir como base de sustentação da política monetária, contribuindo para assegurar sua eficácia. Mas seus processos e forma de condução tendem a ser muito mais lentos, dificultando sua utilização como instrumento de estabilização. Acho mais construtivo reconhecer que o choque é a disparada da inflação. A política de juros é o remédio necessário, particularmente no curto prazo.

Broadcast – Em quanto tempo e quais seriam as consequências para o Brasil com esse aperto?

Gleizer – É difícil prever o prazo destes processos, em particular num contexto em que ainda lutamos contra a pandemia e estamos testemunhando uma guerra com profundas consequências sobre o cenário geopolítico internacional. Uma forma de tentar estimá-lo é fazendo uso de indicadores financeiros. A estrutura a termo das taxas de juros americanas sugere que a Fed Funds Rate atingirá um pico de uns 3% em meados de 2023 e depois começará a cair. Me parece que o nível já atingido pela inflação e as condições vigentes no mercado de trabalho, que continua extremamente aquecido, vão requerer mais do que isso. Em outras palavras, minha sensação é que as taxas subirão mais do que a curva hoje precifica, dificultando ainda mais a condução da política econômica brasileira. Posso estar enganado no meu prognóstico, mas estou seguro de que esta possibilidade deveria estar sendo contemplada com muita seriedade no Brasil.

Broadcast – Caso a condução da política fiscal siga problemática, quais os riscos de influxo de recursos que estão vindo para o Brasil, em um cenário de aumento de juros nos EUA?

Gleizer – Os investidores estrangeiros não ignoram os problemas fiscais brasileiros, nem os riscos associados à eleição. Eles são gestores de risco. Conhecem a gravidade da questão fiscal brasileira e estão atentos aos sinais emitidos pelos candidatos e pelas pesquisas de opinião e de intenção de votos. Eles entendem que a situação fiscal brasileira melhorou circunstancialmente, devido ao aumento da arrecadação causado pela elevação da inflação e graças à contribuição da alta dos preços das commodities. São benefícios transitórios, resultantes de situações problemáticas. O ponto crucial aqui é que os investidores, locais e estrangeiros, entendem que a situação fiscal brasileira melhorou apenas transitoriamente. Eles compreendem que a falta de um arcabouço fiscal robusto, que promova a geração de superávits primários, contenha o crescimento da dívida pública e permita usar a política fiscal de forma anticíclica, é uma imensa fragilidade da economia brasileira. A dívida bruta brasileira deve fechar o ano próxima a 80% do PIB. Este é um elemento de enorme vulnerabilidade, principalmente diante da necessidade de novos aumentos de juros reais. Os investidores estão focados em acertar o “timing”, isto é, em identificar a hora certa de diminuir ou hedgear suas posições. Com o aumento de juros nos EUA e a aproximação das eleições, a tendência é este momento também se acercar. Sabemos, também, assim como sabem os investidores locais e estrangeiros, que um ano eleitoral não é propício à aprovação de reformas e a tendência é que aumente a incerteza, desincentivando ainda mais o investimento em capital fixo. O debate pré-eleitoral deveria focar nas propostas para nos tirar desta armadilha de crises fiscais recorrentes, redução da capacidade de poupança e investimento e estagnação econômica, com todos os malefícios que isto trás para a população. Por enquanto os sinais não são nada positivos.

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