O Globo
Nos anos 1990, a reforma jurídica da gestão pública foi muito debatida, conseguiu avançar em vários pontos, mas acabou ficando para trás com o tempo. O governo federal do momento preferiu atacar instituições e, naturalmente, não teve interesse em desenvolvimento jurídico.
Se o Brasil der sorte, caberá ao novo governo cuidar do tema. Mas é preciso debater desde já possíveis prioridades de reforma administrativa, alternativas normativas e erros jurídicos a evitar.
Um dos focos deve ser a construção legislativa da figura das fundações estatais de direito comum. Elas podem atuar em serviços e atividades como saúde, educação superior, cultura, pesquisa e inovação. A vantagem delas, em comparação com os velhos modelos de autarquias e órgãos públicos, é a maior flexibilidade jurídica, indispensável nessas áreas.
Em 2020, o Supremo Tribunal Federal reconheceu as fundações estatais como constitucionais (ação direta de inconstitucionalidade 4247). Mas o governo nada fez para construir um regramento geral que tornasse seu uso juridicamente claro e seguro para todos os entes da Federação. Com isso, a administração brasileira, quando precisa de rapidez e inovação, continua recorrendo a gambiarras jurídicas, que logo começam a ser atacadas, gerando paralisia e riscos para os gestores.
Outra prioridade administrativa é modernizar os recursos humanos públicos, com foco na melhoria de sua gestão. A prática atual não permite o recrutamento adequado de pessoas: os concursos públicos, demorados e burocráticos, focados na memorização de conteúdo e incapazes de valorizar habilidades e competências, acabam por privilegiar concurseiros, mesmo quando inadequados para os cargos, e afastam pessoas sem recursos para se dedicar integralmente aos estudos, agravando a desigualdade.
O quadro de pessoal é muito fragmentado e atende aos interesses corporativos, com privilégios injustificáveis para carreiras da elite, em especial as jurídicas, bem mais do que às necessidades da administração contemporânea. No geral, servidores não são avaliados no exercício da função e seu desempenho não é incentivado nem valorizado.
Como começar a desfazer os gargalos jurídicos que atrapalham a gestão de recursos humanos e impedem sua reforma? Um bom caminho é apoiar projetos de lei que já tramitam no Congresso Nacional em temas como limitação do pagamento de indenizações (o “PL dos Super Salários”), modernização geral dos concursos públicos (PL 252/2003) e outros.
Um erro que não se deve cometer é propor emendas para incluir na Constituição ainda mais regras de detalhe sobre servidores públicos, como fez o governo atual com a PEC 32; era inevitável que, durante a tramitação, ela acabasse virando um trem da alegria corporativa, frustrando qualquer possibilidade de avanço real.
Integrar as carreiras públicas é um caminho a seguir. Mas não é fácil construir as leis necessárias e criar um ambiente favorável à sua aprovação. Enquanto se investe nisso, é possível, por meio de soluções administrativas, ir fazendo integrações no nível da formação e do treinamento de agentes públicos. É negativo que diplomatas, oficiais das Forças Armadas, advogados públicos, controladores de contas, membros do Ministério Público e juízes não compartilhem, entre si e com o funcionalismo em geral, boa parte de seus programas de formação; afinal, todos são agentes do mesmo Estado. Mesmo sem reforma legal imediata, os vários ministérios e Poderes, por meio de suas escolas de governo, podem colaborar politicamente para integrar programas de formação e treinamento, bem como professores, com efeitos institucionais importantes.
Em seguida, será preciso, por meio de leis, juntar carreiras do Poder Executivo que não deveriam estar separadas. O governo francês tem feito isso: recentemente, abriu a função diplomática aos diversos tipos de profissionais públicos qualificados, extinguindo a discriminação por carreira. Também por aqui um pressuposto da modernização pública é integrar ao máximo o quadro de servidores. Mas como preparar essa reforma legislativa e criar incentivos para sua efetiva tramitação?
Entre suas primeiras medidas, o novo governo brasileiro poderia apostar em uma lei que instituísse a moratória geral das nomeações e das promoções das várias carreiras por certo prazo, o qual poderia ser abreviado com a conclusão da votação, positiva ou negativa, de todas as propostas governamentais de integração de carreiras — as quais o Congresso aceitará ou não segundo seu critério e o empenho político do governo.
Nesse meio tempo, uma lei especial poderia criar um órgão central de recursos humanos, com autonomia técnica, blindado dos interesses partidários e corporativos, para, de forma experimental, colocar em prática um programa justo, sério e crível de avaliação de desempenhos no Poder Executivo. Superada a fase de testes e feitos os ajustes necessários, o aprendizado serviria de base à implementação das leis que, para as várias carreiras, eliminassem de vez as progressões automáticas por tempo de serviço e autorizassem a exoneração de servidores com desempenho insuficiente reiterado, medidas já viáveis constitucionalmente.
Quanto aos erros a não repetir, insisto naquele que referi pontualmente: temos de interromper radicalmente o processo de inflação constitucional.
Na versão de 1988, a Constituição já veio enorme e criou problemas sérios de gestão (em matéria de recursos humanos e previdência dos servidores, por exemplo). Com o tempo, o problema se agravou em relação aos vários temas de políticas públicas e organização estatal, como comprovado por pesquisa de Rogério Arantes e Cláudio Couto (“1988-2018: Trinta Anos de Constitucionalização Permanente”, no livro “A Carta”, organizado por Naércio Menezes Filho e André Portela Souza).
Até hoje, foram 122 emendas para incluir regras casuísticas de todo tipo na Constituição, engessando e distorcendo a gestão pública. Em 2022, chegamos à hiperinflação constitucional: em menos de 5 meses já foram 8 emendas. Em excelente análise, Daniel Couri e Paulo Bijos mostraram o efeito negativo desse processo em um campo vital para a gestão: o das finanças públicas (“Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, no livro “Reconstrução: o Brasil nos anos 20”, organizado por Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska). Há problema semelhante em muitos outros campos. Por isso, combater a inflação constitucional é condição indispensável para qualquer progresso jurídico na gestão pública brasileira.
Programa de governo não se faz só com políticos, militantes e economistas. Os especialistas em direito público precisam arregaçar as mangas e colaborar com diagnósticos sobre disfunções jurídicas, com avaliações de riscos, com levantamento de alternativas e com a criação de incentivos.
Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-caminhos-juridicos-para-reformar-gestao-publica.html
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