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Moedas digitais privadas: a urgência de uma regulação prudencial

São muitas as questões relevantes que se colocam para discussão econômica sobre o sistema de moedas digitais privadas. Dentre elas, podemos citar a interação entre essas moedas e as moedas digitais dos bancos centrais (as CBDCs), privacidade, usos econômicos alternativos da tecnologia de blockchain, concentração de poder econômico, sustentabilidade de custos etc. Essas questões serão discutidas em uma sequência de futuros artigos no nosso blog. Hoje iremos focar na urgente necessidade de um melhor entendimento do funcionamento do mercado de moedas digitais privadas por parte dos órgãos reguladores, governos, Legislativo e economistas para que sejam determinadas regras básicas de proteção e regulação prudencial desse novo sistema financeiro.

É interessante lembrar que o surgimento dessas moedas se deu dentro do contexto de uma ideologia libertária. Elas seriam a expressão no mercado financeiro da crescente valorização do protagonismo do indivíduo em grande parte das sociedades contemporâneas. Agentes privados criariam suas próprias moedas, fixariam suas regras e executariam suas transações de maneira descentralizada, sem interferência de instituições governamentais. Como exemplo disso, tem-se a regra de fixação de um volume máximo de emissão de 21 milhões de unidades da Bitcoin, criada com o objetivo de blindar a moeda dos eventos inflacionários provocados por políticas governamentais definidas fora do ambiente da escolha individual. 

Até aqui, tudo bem. É razoável compreender que indivíduos tenham o direito de criar grupos privados com suas regras internas e correrem os riscos que entenderem razoáveis para as suas respectivas funções utilidades no que diz respeito ao apetite de risco versus o retorno esperado.  Mais importante, os benefícios dessas moedas digitais seriam muitos: agilidade, redução de custos, descentralização do sistema e inclusão financeira, entre outros. De fato, essas moedas atraíram muitos investimentos e cresceram vertiginosamente em volume de mercado, chegando a US$ 3 trilhões há pouco mais de um mês.

No entanto, o sistema de moedas digitais privadas depende de um alto e estável grau de confiança mútua. Na vigência de um sistema descentralizado, cada membro da comunidade precisa seguir, e acreditar que cada um dos demais membros também seguirá, as regras instituídas pelo grupo. Como o valor de algumas das maiores moedas digitais privadas apresenta altíssima volatilidade (algumas variam mais de US$ 1.000 em poucos minutos), o funcionamento do mercado dessas moedas tem um equilíbrio instável, bastante suscetível a variações de percepção dos seus agentes.

É nesse contexto que surgem as moedas digitais privadas estáveis, ou stablecoins.  Essas moedas assegurariam aos seus detentores uma paridade fixa de um para um com o dólar. As stablecoins conseguiriam não apenas suprir a demanda de investidores mais avessos ao risco, mas também serviriam como uma base de valor para a operacionalização de um mercado de negociação entre as diversas moedas digitais entre si e as suas conversões em moedas tradicionais. Pode-se dizer que a confiança dos agentes na estabilidade das stablecoins viabilizaria em grande parte a própria existência desse novo sistema financeiro.

É fácil concluir que uma pequena quebra de confiança nas stablecoins poderia trazer enormes perdas para o mercado de moedas digitais e é precisamente isso que está por trás do “crypto winter” de 2022. O valor das moedas digitais privadas vem caindo consistentemente desde os últimos meses de 2021, mas nada comparável à avassaladora espiral negativa que começou em maio deste ano e não parece terminar. Investidores em moedas como a algorithmic stablecoins Terra e sua irmã Luna viram os valores de seus investimentos irem a zero em poucas horas, com desprezíveis chances de qualquer recuperação do projeto. A mais importante asset-based stablecoin (Tether) também perdeu a sua paridade com o dólar por algumas horas, levando a uma onda até então inédita de vendas no mercado de moedas digitais privadas como um todo. 

O Bitcoin caiu mais de 50% neste ano e 70% desde o seu pico no segundo semestre do ano passado para abaixo de US$ 19.000. A Ether caiu aproximadamente 67%, para perto de US$ 1.000. A Celsius e a Babel (lenders digitais) congelaram os saques de seus clientes, a Coinbase e a Gimini, entre as maiores bolsas de ativos digitais do mundo, demitiram milhares de funcionários. Algumas carteiras bastante conhecidas estariam perto de um verdadeiro precipício, pressionadas pela demanda maciça de investidores por resgate. O valor total das maiores moedas digitais privadas caiu para menos de US$ 1 trilhão neste mês.

Até agora, estudos de órgãos reguladores têm avançado pouco, restritos ao âmbito de consultas públicas, longe de uma conclusão sobre as medidas necessárias para uma eficaz regulação prudencial.  O movimento inédito de venda de ativos em massa indica que os reguladores precisam ser mais rápidos e focar na regulamentação das stablecoins, hoje um mercado de US$ 120 bilhões. É dele que vem o potencial de desestabilização do sistema como um todo.

Sabemos que, para poder garantir a conversibilidade, os emissores de stablecoins precisariam ter em suas reservas ativos de alta liquidez e baixa volatilidade ou, no mínimo, seguirem uma versão privada do que seriam os limites de Basiléia. Como essas empresas não têm obrigação de fornecer seus balanços aos órgãos reguladores – e nem mesmo aos seus investidores –, não há como avaliar a resiliência da conversão desses tokens em dólares. Os agentes desse mercado precisam simplesmente confiar na conversibilidade para que o sistema como um todo fique de pé. Se bancos enfrentam riscos de corridas por saques, stablecoins enfrentam riscos de corrida ainda maiores.

Dado o volume monetário do mercado de moedas digitais, uma corrida por liquidez para fazer frente às demandas por saques causada por uma quebra de confiança nas stablecoins poderia, eventualmente, inundar o mercado de ativos digitais e de ativo reais de maneira automática e desorganizada. Seria razoável supor que, se isso ocorresse, os mercados teriam dificuldade em absorver esse volume na situação atual de incerteza, políticas governamentais contracionistas e reduzida demanda por ativos de risco.

Um agravante que ainda não aparece em toda a sua extensão vem do grande número de operações alavancadas dos investidores do mercado de crypto. As chamadas de margem já começaram há algumas semanas. A Three Arrows Capital, um dos maiores fundos de hedge em crypto ativos do mundo, não foi capaz de cumprir com suas obrigações no último final de semana. A alavancagem do setor de moedas digitais privadas nunca deveria ter atingido os níveis atuais.

Uma ideia interessante parece surgir no mercado brasileiro. Há indicações de que a moeda digital do Banco Central será emitida já no segundo semestre deste ano e que os bancos privados terão a permissão do BC para aceitar depósitos de indivíduos em CBDC. Uma vez que esses bancos já são regulados, poderíamos imaginar uma possível mitigação dos riscos desse mercado no Brasil. Assunto para nossa discussão futura sobre a interação entre moedas digitais privadas e as CBDCs.

Artigo da série Moedas Digitais Públicas e Privadas, sob curadoria de Luciana Hall C. Coelho.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Luciana Hall C. Coelho