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Orçamento maldito

Serão mais de R$ 5,5 trilhões. Sim, esse deverá ser o patamar das receitas da União estimadas para o exercício financeiro de 2023. Fruto do esforço fiscal de cada brasileiro, esse enorme volume de recursos públicos deveria ser transferido para o Estado com o objetivo de financiar o desenho e a execução de políticas públicas que visem ao alívio da pobreza e da miséria; a oferta adequada de serviços básicos para a população; os investimentos públicos necessários à ampliação do nosso estoque de capital físico e o funcionamento eficiente da máquina pública.

Essa é a base de um orçamento público. Tributa-se a população e as empresas e aloca-se os recursos arrecadados para garantir o bem-estar geral da população, além de oportunidades para os menos favorecidos e a promoção do desenvolvimento econômico e social da nação. Melhor o processo orçamentário, com as receitas arrecadadas (ou as eventuais isenções fiscais) alocadas de forma eficiente, melhores os resultados do ponto de vista econômico e social. Para tanto, planejamento, consistência e efetividade do gasto são condições necessárias. Transparência também deveria ser, pois submete ao escrutínio e monitoramento públicos as escolhas que governantes e gestores públicos fazem em nome dos cidadãos.

Nada mais distante do que a realidade da gestão orçamentária brasileira. Estados e municípios erodiram a confiabilidade do processo orçamentário na mesma intensidade em que a crise dos subnacionais mostrou uma realidade totalmente distinta daquelas refletidas nas suas metas fiscais (e nos relatórios dos tribunais de contas estaduais). Na União, as inesquecíveis pedaladas fiscais foram substituídas pela criatividade recente dos furos no teto de gastos, pelo orçamento secreto e outros dispositivos não tão secretos como o fundo eleitoral, o calote dos precatórios ou as prioridades invertidas para o atendimento temático e financeiro de bases eleitorais. Mais do que reflexos de inabilidades política e de gestão pelo governo federal, são provas de que o abandono do arcabouço orçamentário veio via delegação da alocação dos recursos públicos ao varejo dos interesses políticos cuja soma nem sempre (ou quase nunca) equivale ao conjunto de interesses públicos.

Dentre as tantas heranças malditas que agora sim o próximo presidente irá receber, será essa delegação criminosa do orçamento público a que maior trabalho ele terá para reverter.  Mas ele terá de fazê-lo se quiser de fato governar. A boa notícia é que quase tudo o que é necessário para uma boa gestão orçamentária prescinde de novas leis ou regras. A par de bem-vindas atualizações e alguns aperfeiçoamentos regulatórios que podem beber de fontes sérias como os estudos de Daniel Couri e Paulo Bijos, descritos no livro Reconstrução[1], o que nos tem faltado é seriedade, governança e transparência no processo orçamentário. Revisão de gastos, planejamento de médio prazo, avaliação de impacto das políticas públicas, accountability e qualidade do gasto público e da alocação recursos deverão ser a base para um profundo debate público em torno das nossas prioridades como País. Debate que requer liderança, espírito público e competência na gestão, mais do que novas leis.

Há que se abandonar a ideia megalômana de um Ministério da Economia e devolver ao Planejamento, Orçamento e Gestão seu merecido e necessário protagonismo. Nele, deverão ser fortalecidas e integradas as diversas etapas e funções da elaboração do orçamento público com as visões de curto e médio prazos que são, em conjunto, imprescindíveis para garantir a consistência de uma agenda de Estado. Nessas etapas, a adoção da revisão dos gastos públicos – à exemplo do que já fazem a grande maioria dos países da OCDE – deverá ser o ponta pé inicial para o resgate do processo orçamentário. E aqui a revisão deverá valer para gastos obrigatórios e discricionários. Apoiada por um processo de avaliação de impacto de políticas públicas que seja transparente, independente e baseado em dados e evidências, cada linha de gasto e de subvenção fiscal deverá ser revista, avaliada e discutida com o Congresso e com a sociedade. Afinal, assim como cabe ao Parlamento a sua discussão e a aprovação, é do Executivo a prerrogativa de propor uma peça orçamentária que reflita as prioridades que o elegeu e da sociedade a de acompanhar – e revalidar ou não – as escolhas feitas pelos governantes eleitos.

Daí a importância, agora mais do que nunca, de transformar o debate sobre o orçamento público no Brasil em um elemento de exercício de cidadania. Esse é o único caminho que nos permitirá reverter a herança maldita que aí está e transformar um orçamento igualmente maldito numa ferramenta de combate às desigualdades e de promoção do nosso já tardio desenvolvimento econômico e social.

Artigo da série Qualidade do Gasto Público, sob coordenação de Ana Carla Abrão Costa.


[1] “Reconstrução: o Brasil nos anos 20”, por Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Ana Carla Abrão Costa