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Neutralizar o poder político da Suprema Corte e do STF

Estadão

A decisão da Suprema Corte norte-americana de 24 de junho, retirando, por 6 votos a 3, a proteção constitucional à prática legal do aborto, que perdurava há quase meio século naquele país, chocou o mundo e levou à indignação os próprios chefes dos dois outros Poderes daquela República. Ao invés de cuidar precipuamente da constitucionalidade das leis federais e da harmonização das legislações dos Estados que compõem a União, a Suprema Corte governa o país paralelamente. Temos, assim, um governo eleito e um governo judicial. O primeiro é exercido pelo presidente Joe Biden; o segundo é inspirado pelo ideário do ex-presidente Donald Trump.

Nesse ambíguo comando da nação, a Suprema Corte, no momento em que larga às feras ultraconservadoras milhões de mulheres, promete pautar, logo em seguida, outras medidas medievais. Para causar inveja ao Talibã, o honorable juiz Clarence Thomas declara que, no futuro próximo, serão proibidos os métodos contraceptivos e o planejamento familiar, protegidos pela Corte desde 1965. Da mesma forma, a Suprema Corte promete novamente criminalizar as relações homossexuais – criminalização esta abolida em 2003 –, bem como declarar inconstitucional a lei de 2015 que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E, para mostrar do que é capaz, uma semana antes da retirada das garantias constitucionais ao aborto, a Suprema Corte confirmou o direito irrestrito ao uso de armas por qualquer pessoa, não obstante os massacres que se sucedem naquele país.

Com todas essas decisões tomadas e agendadas, a Suprema Corte deixa de ser um símbolo secular da democracia, inaugurada naquele país em 1776, para se tornar um prédio cercado por imensas grades que procuram bloquear as manifestações de justa indignação do povo norte-americano. Dois terços da sociedade já se manifestaram contra este poder paralelo em que se transformou a Suprema Corte ao retirar da proteção federal o direito ao aborto.

Nas democracias, os Poderes constituídos não podem transmitir um sentimento de insegurança para a sociedade e para as pessoas. Quando tal ocorre, a democracia está em perigo real, pois um dos seus fundamentos é a garantia do exercício dos direitos naturais individuais e coletivos. Não pode a Suprema Corte ser um fator de instabilidade social e política, o que é exatamente o contrário de sua função institucional. É o que ocorre nos Estados Unidos, onde o direito à privacidade e à intimidade pessoal está sendo destruído pela cúpula do Poder Judiciário.

Qual é a causa desse sinistro retrocesso? É, obviamente, o sistema de nomeação dos juízes da Suprema Corte pelo presidente da República, com a ratificação do Senado. Esse regime teve sua razão histórica há 250 anos, pelo fato de os Estados federados, em face das enormes disparidades entre eles, necessitarem de um tribunal federal que pudesse arbitrar suas diferenças e desavenças de forma absolutamente independente.

Esse sistema se degenerou com o passar dos séculos, pela hegemonia nacional dos dois partidos – Republicano e Democrata –, o que levou os sucessivos presidentes, cada vez mais, a nomearem pessoas que professassem as ideologias do partido no poder. Desse modo, a Suprema Corte foi se tornando um tribunal cuja maioria reflete cada vez mais as radicais posições ideológicas dos presidentes que os indicam. Hoje, há na Suprema Corte seis juízes fundamentalistas de raiz e três magistrados defensores dos direitos humanos e das minorias. Não se trata de um tribunal, mas de uma instituição que impõe suas decisões, de nítida feição política, subtraindo os poderes dos outros dois Poderes eleitos. Esse fenômeno é explícito.

O mesmo sistema prevalece entre nós. O presidente da República, com a aprovação do Senado, nomeia os ministros do nosso Supremo Tribunal Federal (STF). A propósito, o atual presidente declarou que tem apenas 20% do STF, mas que, se reeleito, nomeará mais três ministros, o que, segundo se infere, poderá impor uma pauta fundamentalista de costumes, a liberação incontrolada do porte de armas e outras medidas do gênero.

Atualmente, o STF tem oito ministros nomeados pelos governos lulopetistas, devendo, se eleito o seu líder, manter a maioria arrasadora de ministros que certamente vai executar a política de controle social da imprensa, eliminação do teto de gastos e graves medidas de cunho bolivariano – tudo como expressamente prometido pelo candidato populista de extrema-esquerda.

Entre nós, a única maneira de salvar a Democracia desta crescente politização do Supremo será adotar o sistema de nomeação dos seus membros pelo regime de antiguidade dos ministros dos tribunais superiores. Ademais, o exercício da judicatura no STF deveria ser de oito anos. E a competência da Corte deveria se restringir à declaração da constitucionalidade das leis e dos atos normativos e administrativos. Com isso, seriam eliminadas as nomeações claramente político-ideológicas que se acentuaram após a vigência da Constituição de 1988.

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Sobre o autor

Modesto Carvalhosa