Na esperança de aprimorar a conformidade e a qualidade das administrações públicas, o Brasil apostou alto, desde a redemocratização, na expansão dos controles situados fora delas.
O controle de contas aumentou seus poderes e atuação. No âmbito federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) vem, com intensidade, cobrando, investigando ou punindo gestores de diferentes tipos e níveis, além de particulares, e agora influi até na área regulatória, que lhe é estranha. É sobretudo um movimento de auto expansão, por vezes juridicamente questionável; mas nem o mundo político, nem o Supremo Tribunal Federal, que poderiam barrar excessos, têm se oposto a ele.
Os Tribunais de Contas dos Estados (TCEs), cujas competências alcançam administrações estaduais e municipais, tornaram-se muito presentes nas licitações, pois foram autorizados a suspender os editais (lei 8.666, de 1993). Além disso, os TCEs passaram a ser temidos pelos Prefeitos, pois a rejeição de contas gera inelegibilidade (Lei de Inelegibilidades de 1990).
Em paralelo, a Lei da Improbidade de 1992 fez com que, como estratégia de melhoria da gestão pública, o Ministério Público (MP) priorizasse a punição de gestores e de contratados privados. Foi extraordinário o número de ações de improbidade propostas nesses 30 anos, tendo os Prefeitos como principal alvo. Embora a lei tenha sido reformada em 2021 para conter essa judicialização, o MP ainda possui outros instrumentos à sua disposição, inclusive as ações penais – e deve continuar interferindo.
Um último exemplo: ao burocratizar as regras de contratação pública, sucessivas leis deram pretexto para, em nome de seus interesses, os concorrentes privados buscarem mais e mais interferências da Justiça, paralisando ou mudando licitações. Com isso, em paralelo às interferências dos controladores de contas, as liminares judiciais são hoje bastante comuns na gestão contratual pública.
Em busca de uma administração pública melhor, temos acreditado no “quanto mais controle externo melhor”: diversos controladores de fora, com atuação simultânea, incumbidos de uma ação bem direta — dirigir, cobrar, investigar e punir quaisquer gestores administrativos.
Isso onera a gestão pública. Um secretário municipal de educação, por exemplo, para além dos desafios intrínsecos ao cargo, tem de se defender no TCE por uma licitação de material escolar, responder a ações de improbidade por contratação de professores temporários e contestar ações populares, movidas sem custo por quaisquer cidadãos, em virtude de convênios com o terceiro setor. É um gestor sobrecarregado e amedrontado pelos controles externos. Não por acaso, a literatura vem denunciando uma tendência à timidez ou paralisia na administração pública – um “apagão dos teclados”.
Entre potenciais custos e benefícios, será que o modelo de mais e mais controles está mesmo melhorando a administração pública?
Pelos relatórios de atividades do TCU de 2012 a 2021, o número de contas julgadas irregulares subiu 20% nesses 10 anos, em crescimento relativamente constante. Na média anual, cerca de 27% das contas “prestadas” ou “tomadas” foi considerado irregular.
Os dados sugerem uma fiscalização forte, mas também a crise de nosso modelo, que, embora tenha seu valor, não consegue ser efetivo em diminuir o número de irregularidades na gestão pública. É um “controle médio”, que em parte evita as desconformidades, mas funciona também como armadilha contra o avanço da gestão.
De que nos adiantam controles muito ativos, mas que não melhoram decisivamente a qualidade e a conformidade das administrações públicas a que são dirigidos?
O TCU acaba de publicar sua “Lista de alto risco da administração pública federal 2022”. Na introdução, a presidente Ana Arraes destaca que “esses riscos representam problemas crônicos do país, sobre os quais o Tribunal já realizou diversas ações, mas não observou progresso satisfatório para sua solução”.
Com relação às contratações públicas, o relatório, a partir de uma análise comparativa entre 2017 e 2021, aponta que, na administração pública, “ainda há problemas nos modelos institucionais de gestão de contratações, como os relacionados a baixa capacidade de gestão de riscos, insuficiência de pessoas, baixa capacidade da organização de monitorar seu desempenho em contratações (…) e limitações na atuação das auditorias internas sobre a área”.
O diagnóstico do próprio TCU permite a hipótese de que o Brasil errou o alvo. Em busca de maior conformidade, o natural seria que, nestes 30 anos, priorizássemos a estruturação, profissionalização e fortalecimento dos sistemas internos à administração pública. Fizemos justamente o contrário: fomos ampliando e sobrepondo controles, na expectativa de que, sendo independentes, podendo interferir sem limites na gestão e podendo fazer cobranças sobre quaisquer gestores, os controladores de fora colocassem no prumo as ações administrativas.
Com isso, além de onerar os gestores, gerou-se o efeito colateral de enfraquecer e tornar pouco relevantes os sistemas internos de conformidade, já que os controles de fora podem simplesmente pulá-los e, em uma interferência de varejo, dar ordens, cobrar e tomar contas de qualquer um, lá na ponta.
Nossos controles públicos têm de ser repensados.
Outros países, que também têm Tribunais de Contas, apostaram em arranjo diferente. É o caso da França, pioneira no controle de contas com sua Cour des Comptes; também da Itália, cuja Corte dei Conti foi referência na criação do TCU no Brasil.
A partir da técnica de especialização de funções, tais países fizeram a concentração da responsabilidade interna pela regularidade das contas públicas. Isso foi feito na figura de determinados agentes da própria administração – são os comptables publiques, na França, e agenti contabili, na Itália. Tais funcionários atuam na operacionalização dos gastos públicos, zelando internamente pela conformidade das decisões dos agentes competentes para ordenar despesas. São esses funcionários que respondem, a título pessoal, ao controle externo de contas por qualquer irregularidade, atuando como uma espécie de “responsáveis profissionais”.
Na França e na Itália são eles que prestam contas aos respectivos tribunais de contas – os quais, por sua vez, têm sua atuação, quanto ao controle de contas, focada neles, não entrando no varejo que caracteriza nosso sistema e, portanto, não onerando a generalidade dos gestores. O racional é simples: esses tribunais de contas fiscalizam os “responsáveis profissionais”, os quais, por sua vez, articulados com um sistema interno de conformidade, cuidam e respondem pela regularidade financeira das decisões dos gestores.
O modelo propicia atuação mais concentrada dos tribunais de contas, que, embora sejam fundamentais, não fazem um controle com o grau de fragmentação que vem caracterizando, por exemplo, o TCU. Os “responsáveis”, por integrarem a própria máquina administrativa, e serem agentes com maior permanência, acompanham e zelam pari passu pela regularidade financeira das decisões públicas, especializando-se nesse tipo de atuação.
Em suma, é sobretudo o sistema interno que garante a maior conformidade possível, não a conformidade mais ou menos que tem sido propiciada por nossos controles sobrepostos. Além disso, liberados da tarefa inglória de controlar minuciosamente a linha de produção administrativa, os tribunais de contas podem priorizar auditorias operacionais, em que eles são insubstituíveis.
Um sistema interno de conformidade fortalecido é mais eficiente, tanto por ser mais próximo e alinhado com a gestão, como por cuidar da intermediação com os controles de fora, impedindo que os gestores vivam acossados por cobranças sucessivas. Assim, compreende-se por que reformas administrativas em países europeus, entre os anos 1990 e 2000, apostaram nos controles internos como guardiães da linha de produção e nos tribunais de contas como grandes auditores operacionais.
O modelo brasileiro de controles parece já ter esgotado sua capacidade de – multiplicando-se, sobrepondo-se e interferindo sobre quaisquer ações e quaisquer agentes administrativos – ajudar na evolução de nosso mundo público. A recente mudança na Lei de Improbidade, feita por uma forte maioria no Congresso Nacional, revelou uma insatisfação geral com seus efeitos, e mesmo com os juízes que querem administrar.
Mas nossas reformas não podem se limitar a conter interferências excessivas dos controladores de fora; temos que, escapando da armadilha do controle médio, substituí-las por algo mais poderoso: um sistema interno de conformidade que realmente funcione e ajude a gestão pública, combinado com amplos diagnósticos, a cargo dos tribunais de contas, sobre o funcionamento geral da administração, bem como com um Judiciário forte, mas deferente às escolhas públicas.
Artigo da série Reformas no Mundo Público, sob coordenação de Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito SP e sócio do CDPP.
Conrado Tristão é mestre e doutorando pela FGV Direito SP.
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.