Acusações de ativismo judicial às cortes de Brasil e EUA têm base em situações bem diferentes
Folha de S. Paulo
[RESUMO] Com modelos de funcionamento distintos, o Supremo Tribunal Federal e a Suprema Corte dos EUa sofrem críticas de ativismo judicial. A situação política e o tamanho das Constituições, porém, marcam diferenças importantes. Nos EUA, de Carta enxuta, governantes contornam as discordâncias com novas leis, que atenuam as limitações judiciais. No Brasil, o presidente e seus apoiadores vociferam abertamente contra o STF, cujos ministros são ridicularizados em manifestações.
“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da luz, a estação das trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o paraíso, íamos todos direto no sentido contrário.”
O parágrafo inicial de “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens, é certamente um dos mais impactantes e conhecidos da literatura universal. Enquanto descreve a violência da Revolução Francesa, o romance transita entre Londres e Paris e faz com que nos perguntemos por que duas cidades com desafios comparáveis evoluíram de forma tão diversa.
Comparáveis também foram os desafios enfrentados pelo Brasil e os EUA quando se constituíram como Estados independentes. Impunha-se estruturar um setor público com autocontrole contra ilegalidades e abusos de poder de autoridades.
No início, os modelos foram distintos, mas, após a República, o Brasil seguiu os EUA, prevendo amplo controle do Judiciário sobre o setor público, inclusive quanto à constitucionalidade das leis. Assim, a Suprema Corte dos EUA e o nosso STF (Supremo Tribunal Federal) criaram identidades.
Em ambos os países, cresceram com o tempo as intervenções de juízes em geral sobre a atuação dos demais Poderes. Claro, há críticas, algumas com acusações de “ativismo judicial”, isto é, de excessos incompatíveis com a neutralidade da função de julgar.
Mas a expansão judicial é, em parte, simples reflexo do enorme crescimento do mundo público: das Constituições, das leis, das administrações públicas, da tributação, da regulação pública, dos conflitos e dos direitos sociais. Ao interferir, com frequência o Judiciário está apenas coibindo ilegalidades e abusos, ou resolvendo conflitos de normas. Pode-se não gostar das decisões, mas é a função histórica dos juízes.
Muitos deles, é verdade, passaram a fazer interpretações e intervenções mais ousadas, com maior teor político —em favor, por exemplo, de direitos básicos negligenciados ou contra iniciativas autoritárias. Isso os inseriu na perigosa arena política, apoiados ou atacados por movimentos e disputando poder com legisladores e governantes.
Mas a história judicial se desenrolou de forma diversa nos EUA e no Brasil.
Nos EUA, após muitas décadas de equilíbrio entre conservadores e liberais —período em que se tomaram decisões fulcrais como o fim da segregação racial nas escolas do sul dos EUA, o direito à assistência jurídica gratuita, a legalização do aborto e a permissão para casamento entre pessoas do mesmo sexo—, formou-se uma clara maioria conservadora na Suprema Corte, com a indicação de três novos membros por Trump.
Com essa nova composição, apenas nos últimos meses foram anuladas a garantia constitucional ao aborto e a limitação ao porte de armas vigente em Nova York e foi cerceado o poder da agência ambiental de limitar as emissões de carbono pelas empresas de energia.
Essas decisões provocaram enfáticas reações do público e de políticos democratas. A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, disse que, “em apenas duas semanas, a Corte promoveu a erradicação da liberdade das mulheres em relação a questões de reprodução, inundou nossos espaços públicos com mais armas mortais e agora decidiu deixar nosso planeta queimar”. O nível de confiança na Superema Corte atingiu o mínimo histórico de apenas 25%.
No nosso STF, a divisão política entre ministros não é tão clara. Há muitas decisões por 6 votos a 5, indicando equilíbrio entre tendências. Interpretações proativas do STF em matérias sensíveis são pontuais, como o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo e a inconstitucionalidade da cláusula de barreira. Não é exatamente pelo “ativismo” nessas matérias que o STF vem sendo atacado.
Outra diferença é que, embora a Suprema Corte americana e o STF atuem como jurisdição constitucional, a dimensão de suas tarefas é incomparável. A Constituição brasileira é gigantesca: hoje, são quase 80 mil palavras (com 125 emendas, algumas não integradas ao texto principal). Só a da Índia é maior. Nos EUA, a Constituição, com suas 27 emendas, tem cerca de 7.500 palavras, menos de 10% da nossa.
Se o STF faz demais, é por haver normas constitucionais demais atrapalhando a governabilidade. Excesso patrocinado também pelo governo atual, que aprovou nada menos que 26 emendas constitucionais. Não é do STF a responsabilidade por isso.
As competências do STF são mais amplas que as da Suprema Corte dos EUA. Três exemplos: cabe-lhe julgar ações penais contra o presidente da República e seus ministros, os membros do Congresso Nacional e outras autoridades; julgar mandados de segurança contra ilegalidades do presidente; e resolver conflitos entre União e Estados.
No contexto atual, em que autoridades federais importantes têm se envolvido em muitos casos criminais, desprezado as leis e atacado a Federação, é natural o STF ser temido pelos infratores ou ser provocado a repor a normalidade. O maior “ativista” não é ele nesses casos.
Há mais um ponto: o papel dos ministros do STF nas eleições, que são organizadas pela Justiça Eleitoral. A Constituição impôs a presença, no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), de três ministros do STF, um deles na função rotativa de presidente. Eles estão lá como os principais garantidores das eleições.
Na situação do Brasil, em que o presidente da República e seu grupo mostram empenho em sabotá-las, era natural que os ministros do STF virassem alvos. Também aqui, o grande “ativista” está do outro lado, tentando destruir o processo eleitoral.
Assim, apesar de a crítica de “ativismo judicial” ser dirigida às cortes dos EUA e do Brasil, as situações são completamente diferentes.
Nos EUA, as críticas são de grupos que discordam das decisões da Suprema Corte, mas respeitam seu poder para as proferir. Governantes propõem novas leis para atenuar o efeito das limitações judiciais, e eleitores descontentes anseiam por novas indicações à Corte que possam alterar o cenário. Dentro da normalidade institucional.
á no Brasil, o presidente e seus apoiadores atacam de modo aberto e vulgar o STF e seus membros e ameaçam não cumprir suas decisões. Um ativismo para destruir.
Como resposta, cabe ao STF seguir aprimorando seus processos internos (evitar decidir questões constitucionais monocraticamente, por exemplo) e, sobretudo, resistir com firmeza e sabedoria aos ataques e provocações.
A todos nós, brasileiros, cabe a defesa intransigente da ordem institucional, tendo presente que a Justiça e o STF são pilares fundamentais da nossa democracia.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/stf-enfrenta-ativismo-destrutivo-de-bolsonaro-e-seus-apoiadores.shtml
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.