Artigos

Carlos Ari Sundfeld: Um novo direito público para um governo democrático e progressista

Proposta para tirar Brasil da crise envolve correção da Constituição inflacionada e reforma do Estado

Globo

Passei o último ano e meio me reunindo semanalmente com outros colegas e desse diálogo resultou o trabalho “Contribuições para um governo democrático e progressista”. Bernard Appy, Francisco Gaetani, Marcelo Medeiros, Pérsio Arida, Sérgio Fausto e eu procuramos oferecer sugestões e ideias úteis para lideranças políticas comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com o bem público.

Partimos da constatação de que o Brasil precisa de transformações e, portanto, de reformas. E fizemos propostas buscando maior inclusão e redução das desigualdades sociais, economia mais eficiente e maior crescimento, estado mais eficiente e democrático, sustentabilidade e equilíbrio macroeconômico.

O documento alcançou ampla repercussão e vem sendo debatido, apoiado ou criticado em artigos de opinião. Era nosso objetivo: ajudar no debate público.

Quanto às propostas, elas envolvem quatro conjuntos: reformulação e expansão do modelo de proteção das famílias de menor renda; mudanças no financiamento e nos benefícios da previdência social, no FGTS e no seguro-desemprego; ampla reforma do Estado; e reforma tributária abrangente.

É um temário extenso, envolvendo diversas especialidades. Limito-me aqui a dois destaques jurídicos.

Um deles: para viabilizar as reformas sugeridas, passo fundamental é corrigir a Constituição, que foi sendo indevidamente inflacionada por uma enxurrada de emendas constitucionais ao longo das décadas. Inúmeros grupos políticos e de interesses têm se engajado, frequentemente com sucesso, em constitucionalizar suas visões e pretensões. Por conta disso, o Brasil vai aos poucos entrando na zona de risco da ingovernabilidade.

O primeiro compromisso do governo tem de ser não propor, e não apoiar, em matéria alguma, emendas constitucionais que agravem a atual inflação constitucional. O segundo deve ser o de desconstitucionalização, isto é, propor e negociar no Congresso Nacional a retirada ao máximo de regras que não deveriam ter sido constitucionalizadas. É preciso desconstitucionalizar para governar.

O cuidado óbvio é, nessa calibragem, preservar a essência do texto de 1988. Deve-se manter o compromisso com o Estado Social e Democrático de Direito, mas reduzir significativamente as demais regras constitucionais, que geralmente não integram um texto dessa natureza — sobre servidores públicos, vinculações orçamentárias, detalhamento de políticas públicas, atendimentos a interesses particulares, aspectos organizacionais, dispositivos tributários, organização e competências dos controles públicos, entre outros.

No primeiro momento, as normas que forem desconstitucionalizadas devem ser mantidas com o nível de lei complementar ou de lei ordinária, sendo sua alteração feita posteriormente, em etapas, com ampla discussão e deliberação democrática. Dessa forma se preserva a estabilidade das instituições, ao mesmo tempo em que se permite que governos eleitos tenham menos obstáculos para promover as transformações necessárias. Democracia é alternância no poder. Não faz sentido a Constituição ser enrijecida com as visões dos setores influentes e do governo do dia.

Uma estratégia é enviar ao Congresso Nacional, no início do mandato presidencial, uma proposta de emenda para realizar a desconstitucionalização com a maior amplitude possível, reunindo temas diversos. Em paralelo, é viável prosseguir com a discussão de PECs focadas e já em andamento — como a da reforma tributária — adotando-se a orientação de, assim que obtido consenso quanto a seu conteúdo setorial básico, fazer a adaptação para adequá-las ao objetivo da desconstitucionalização.

O outro destaque jurídico é quanto às medidas necessárias à reforma do Estado.

Várias já contam com base legal mínima e dependem só de ações administrativas que revertam distorções acumuladas na prática. Isso pode ser feito, por exemplo, em campos como governança das empresas estatais, agências reguladoras e transparência administrativa.

Há também uma lista de projetos estruturantes que já estão em tramitação no Congresso Nacional e, com o empenho do novo governo, podem avançar rapidamente: lei de governança da ordenação pública econômicalei de governança públicalei nacional de modernização dos concursos públicoslei sobre programas de integridade nos partidos políticos e lei dos super salários.

Outros projetos estruturantes terão de ser elaborados. São temas como a lei nacional para a estabilidade jurídica e reforma fundacional da gestão pública brasileira (para suceder o antigo decreto-lei 200, de 1967), o estatuto geral das entidades do Sistema S, a avaliação de desempenho como única forma de evolução dos servidores públicos em suas carreiras e, ainda, a legislação de revisão e fusão de carreiras para diminuir as desigualdades entre servidores e permitir a gestão de qualidade da força de trabalho no setor público.

Por fim, é preciso restaurar a capacidade de funcionamento da administração pública, o qual vem sendo afetado pelos controles públicos. Isso deve ocorrer sem prejuízo da atuação, em seus espaços próprios, dos sistemas internos de conformidade e controle, bem como, nas insuficiências desses, dos controles exteriores. Mas a autocontenção dos controladores, em respeito ao legítimo espaço decisório dos gestores, terá de ser exigida. Teremos de enfrentar problemas como politização, personalização, excessos e abusos de autoridade de controladores — que, inclusive, têm levado à oneração ou responsabilização injusta e indevida de agentes públicos, além da instauração de procedimentos administrativos ou judiciais com impugnações não jurídicas.

São também importantes alterações que equilibrem as regras do processo judicial, combatendo a judicialização oportunista, improcedente e onerosa de ações públicas e de contratações públicas, ou contra agentes públicos. Deve haver prazos máximos claros e razoáveis para o início e a conclusão de quaisquer processos administrativos, judiciais e de controle de contas, sob pena de prescrição, decadência e preclusão, para estimular a eficiência dos controles e evitar a insegurança jurídica hoje dominante.

A revisão geral do sistema de controle de contas é indispensável. Deve-se reverter sua politização, reconduzindo-o ao papel de auditoria auxiliar do controle externo do Poder Legislativo, bem como evitar suas recorrentes interferências em matérias alheias a suas competências constitucionais (ex.: regulação administrativa) e impedir que crie por si interferências ex ante da ação administrativa (ex.: em processos de desestatização), que dispute competências com o Poder Judiciário (ex.: responsabilização de particulares, medidas cautelares de indisponibilidade de bens, etc.) ou aja casuisticamente.

Enfim, há muito a fazer em matéria de direito público para tirar o Brasil de sua crise, que foi agravada pela falta de princípios e de competência do atual governo federal. Sem clareza quanto às medidas a tomar, vamos perder e energia. O tempo é curto. Um debate realista sobre isso tem de envolver os publicistas nos próximos meses.

Link da publicação: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2022/09/carlos-ari-sundfeld-um-novo-direito-publico-para-um-governo-democratico-e-progressista.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld