O debate jurídico pode ajudar no amadurecimento das Forças Armadas?
JOTA
Após as eleições, os comandantes militares acharam oportuno divulgar uma nota. Nela, cobraram das “autoridades da República … a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição e da legislação”. No final, disseram que as Forças Armadas estariam “atentas e focadas em seu papel constitucional”.
Se fosse só isso, seria uma boa resposta às pessoas exaltadas que andam clamando contra o resultado das eleições democráticas. Quarteladas não se inserem no papel constitucional dos militares, de modo que a nota parecia garantir: “Não vai haver golpe nenhum e não daremos um passo sequer fora de nossas competências”.
Mas, surpreendentemente, a mesma nota se pôs a sugerir leituras de normas constitucionais e legais sobre as liberdades de manifestação do pensamento, de reunião e de locomoção. Com base nelas, criticou “eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos” e afirmou a necessidade de “corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos”. No contexto, que todos conhecemos, soou como censura ao Judiciário, em especial ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal.
Daí a dúvida: por que os chefes militares teriam o “papel constitucional” de dar a palavra correta sobre as liberdades, a validade de atos judiciais e os limites das competências alheias?
Embora a nota não se estenda no ponto, ela descreveu as Forças Armadas como “moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. Com isso, sugeriu que os comandantes teriam uma competência moderadora, superior às das demais autoridades do país.
Militares reclamam muito da indiferença, incompreensão ou preconceito da sociedade. Pode ser verdade. Mas, para serem respeitados, eles precisam ser consistentes no que dizem. De onde os comandantes tiraram a ideia de que lhes caberia moderar juízes?
Nós, acadêmicos, devemos estar sempre dispostos a examinar ideias. Por isso, o pesquisador jurídico Marcelo Porciúncula organizou uma obra, que acaba de sair, reunindo trabalhos de diversos autores: “A competência das Forças Armadas segundo o art. 142 da Constituição Federal de 1988” (Ed. Marcial Pons, 2022).
Na primeira parte, ela dá voz a três juristas que, defensores de intervenções militares, argumentam com a necessidade de conter possíveis excessos de outras autoridades – mas, a meu ver, não explicam porque decisões militares seriam mais jurídicas, mais contidas e mais justas que as dos imperfeitos juízes.
A segunda parte contém vários capítulos contrários a essa visão. Um deles, de autoria minha com Carlos Tristão (“As Forças Armadas não são poder deliberante, são órgãos administrativos”), procura mostrar que a tese do poder militar moderador não é jurídica: jamais entrou nas Constituições brasileiras, foi rejeitada nos debates constituintes (o guardião de última instância da Constituição é o STF, não as Forças Armadas – art. 102) e não tem nenhuma tradição jurídica. É só uma tese artificial, desconectada das normas e descrente do valor das instituições jurídicas. Líderes militares responsáveis do século XXI fariam bem em ficar longe dela.
CARLOS ARI SUNDFELD – Professor Titular da FGV Direito SP e Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público
Link da publicação: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/os-militares-e-a-constituicao-22112022
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