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Carlos Ari Sundfeld: PEC da Transição e o desafio de conter a inflação constitucional

Vale a pena continuar apostando na constitucionalização de regras que tentam criar um compromisso forte e permanente com a responsabilidade fiscal?

O Globo

A Constituição brasileira, na forma que adquiriu com suas muitas emendas (ECs) ao longo do tempo, acabou inchada com volume significativo de regras sobre política fiscal. O tópico mais conhecido é o do chamado teto dos gastos públicos instituído pela EC 95, de 2016, que depois foi sendo mexido para autorizar mais e mais despesas, inclusive pela EC 123, de 2022, já durante o período eleitoral.

O assunto voltou agora à pauta, na transição para o governo Lula, por conta das negociações em torno de uma emenda para autorizar novas exceções ao teto. O debate pela imprensa tem se focado sobretudo nas preocupações fiscais e nas estratégias políticas. Mas há também as questões jurídico-constitucionais.

Será que vale a pena continuar apostando na constitucionalização dessas regras, na tentativa de criar um compromisso forte e permanente com a responsabilidade fiscal?

Uma parte da resposta talvez possa vir da análise realista do que aconteceu com os gastos públicos desde 2016. Um fato a considerar é que o governo, quando precisou gastar mais, na pandemia, ou apenas desejou fazê-lo, como durante as eleições de 2022, acabou conseguindo o rápido apoio dos 3/5 de congressistas. Não houve impasses.

Portanto, a constitucionalização do teto, embora possa ter aumentado o preço dos apoios parlamentares a novas despesas — já que o quórum necessário agora é maior — não fez com que as possíveis resistências de congressistas tivessem muito a ver com o desenho da nova política fiscal, se mais ou menos arriscado.

Normas condicionando ou limitando despesas continuam sendo importantes, mas não há evidências de que constitucionalizar as tenha tornado mais estáveis. Por que, então, não tratar do assunto por lei complementar, que exige o voto da maioria absoluta do Congresso, de que a Lei de Responsabilidade Fiscal é um exemplo?

Outra parte da resposta quanto aos efeitos da aposta em constitucionalização está no risco de ela alimentar a inflação constitucional. A evidência dos últimos anos é que o apoio parlamentar às PECs que mudam regras fiscais pode estar sendo pago pelo governo com a tolerância para com a constitucionalização crescente de outras regras e temas.

Nos seis anos que se passaram desde a EC do teto de gastos, a inflação constitucional se acelerou (a cada nova rodada aumenta o volume de normas constitucionais sobre gastos públicos) e se generalizou (a constitucionalização vem aumentando também em outros temas). Foram 30 ECs aprovadas desde 2016, envolvendo coisas variadas como imunidade tributária para templos de qualquer culto, acumulação de cargos por militares, novas carreiras policiais e remuneração da enfermagem. Os lobbies tradicionalmente mais organizados parecem ter aumentado a eficiência em constitucionalizar seus interesses nos últimos anos.

Assim, além dos demais cuidados na negociação que está em curso, o novo governo deveria cuidar do risco de alimentar ainda mais a inflação constitucional. O senador José Serra chamou atenção para isso em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (1º/12/2022). Ao defender sua proposta alternativa, que é de desconstitucionalização, ele destacou que várias das PECs agora em análise “tentam tapar buracos no texto deixando a sala bagunçada”, além de gerar “uma estrutura complexa”. Alertou que o “novo governo está entrando em uma arapuca política com desdobramentos fiscais”, e que, hoje, “emendas constitucionais funcionam como portaria de liberação de verbas, e o Congresso aproveita a situação para avançar ainda mais sobre o Orçamento”. Para ele, “essa deveria ser a última PEC para lidar com o teto de gastos”.

São palavras de um parlamentar que, além de uma bela experiência de vida política no Executivo e no Legislativo, tem compromissos históricos com os grandes valores da Constituição de 1988, com a melhoria da gestão pública e com a responsabilidade fiscal. Em sua despedida do Congresso Nacional — Serra não se elegeu para a próxima legislatura — ele nos adverte que a inflação constitucional só está bagunçando o que se quis arrumar. O Brasil se arrependerá se fizer ouvidos moucos.

Um lema para o novo governo poderia ser: “Chega de constitucionalizar. Vamos agora lutar pela essência da Constituição”.

*Carlos Ari Sundfeld é professor titular da FGV Direito SP

Link da publicação: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2022/12/carlos-ari-sundfeld-pec-da-transicao-e-o-desafio-de-conter-a-inflacao-constitucional.ghtml

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Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld