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Torcer pelo Brasil

Folha

Por duas vezes, nas últimas semanas, notícias provenientes do Brasil fizeram as manchetes dos principais jornais do mundo. Na segunda-feira (9), as primeiras páginas trouxeram imagens da multidão em camisas amarelas tomando de assalto o Congresso Nacional. As legendas davam conta da destruição promovida nas sedes dos Três Poderes da República pelos grupos que, inexplicavelmente, praticamente não encontraram resistência policial.

Esta Folha, em primoroso editorial intitulado “Punhado de idiotas”, vaticinou que em pouco tempo o episódio será lembrado apenas como um “parágrafo vexatório da história”. De fato, o sentimento que me acomete ao imaginar os leitores de todo o mundo contemplando essa patética versão tropical dos acontecimentos de há dois anos no Capitólio é de vergonha e constrangimento. Que ao menos o episódio sirva para estimular a imensa maioria dos cidadãos corretos que votaram em Bolsonaro a se distanciar definitivamente desse grupo de delinquentes inconformados e a praticar oposição de forma construtiva.

Em contraste, a fotografia da banca de jornais inglesa, onde todas as dez publicações do mostruário traziam a imagem de Pelé na primeira página, despertou orgulho, nostalgia e uma profunda gratidão por ter sido agraciado com a possibilidade de ver suas jogadas e vibrar com seu talento e carisma. Para um santista, como eu, que acompanhou o ídolo desde 1968 até o fim de sua carreira, esses sentimentos são muito amplificados.

A comoção refletida nos noticiários de televisão, nas colunas de jornal, nos depoimentos colhidos das pessoas nas ruas deixou claro que não cabe perguntarmos por quem os sinos dobram; todos sabemos que eles dobram por nós.

O jornal francês L’equipe refletiu em sua capa, com dolorosa precisão, a sensação que eu ainda não tinha sido capaz de nomear: “La fin d’un monde”. Pois é, o fim de um mundo que foi o meu. Um mundo de vibração, entusiasmo e otimismo, enriquecidos pela energia da juventude, que
—mais claramente nos últimos dez anos— vem sendo invadido pela estagnação econômica, pela polarização política, pela destruição do ambiente e por ameaças à democracia. É preciso reagir.

Busco alento através da leitura do mais recente livro de Henry Kissinger, “Liderança: Seis Estudos em Estratégia Global”, ainda não publicado no Brasil. Nele, o autor de 99 anos descreve o percurso político de seis líderes mundiais admiráveis, com quem teve intenso relacionamento.

Eles são Konrad Adenauer, arquiteto da reconstrução alemã após a Segunda Guerra; De Gaulle, líder da “France Libre” no mesmo conflito, que retornou ao poder em 1958 para lidar com a complexa questão da independência da Argélia; Anwar Sadat, líder Egípcio que assumiu o poder em um país desmoralizado pela derrota na guerra contra Israel e atuou para transformar as relações com o inimigo histórico; Lee Kuan Yew, o “inventor” de Singapura, que transformou uma ilha desimportante no Sudeste Asiático em uma das nações mais prósperas do mundo; Margaret Thatcher, primeira mulher a ocupar o posto de primeiro-ministro do Reino Unido, que conseguiu reverter a tendência declinante do país, que já durava décadas.
O sexto personagem é talvez o único que não mereça um lugar em um grupo tão destacado de estadistas; Richard Nixon deve sua presença no livro ao fato de ter convidado o jovem acadêmico Henry Kissinger para o posto de secretário de Estado, em 1973.

O livro é muito instrutivo, na medida em que descreve com objetividade a trajetória individual de cada líder e suas circunstâncias. Mais do que isso, a descrição que o autor faz do seu convívio próximo com os biografados confere humanidade aos personagens e estimula a empatia, ao permitir uma melhor visão dos seus desafios e sua motivação pessoal.

O sopro de esperança que busquei na leitura do livro materializou-se com a constatação de que todos os líderes “transcenderam as circunstâncias herdadas e assim conduziram seus países à fronteira do possível”. A eles Kissinger atribui as qualidades do homem insensato de George Bernard Shaw: “O homem sensato adapta-se ao mundo. O homem insensato insiste em adaptar o mundo a si. Sendo assim, todo progresso depende dos homens insensatos”.

O que é verdadeiro para esses líderes em relação à política não o é menos para Pelé, em relação ao futebol. Para satisfazer a nostalgia e enorme admiração pelo ídolo, assisti ao filme “Pelé”, de David Tryhorn. Ao reviver seus gols fabulosos e mesmo suas jogadas que não resultaram em gols, como o chute do meio de campo contra a Tchecoslováquia, ou o drible no goleiro uruguaio Mazurkiewicz —ambos os lances na Copa de 1970—, lembrei-me de uma frase com sentido semelhante à de Shaw: “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”.

No mesmo filme sobre Pelé, o jornalista José Trajano relata que foi à Copa de 1970 disposto a torcer contra o Brasil. Afinal, estávamos em pleno governo Médici, o mais truculento do período de ditadura militar. Vivíamos no Brasil ufanista do “ame-o, ou deixe-o” e do “ninguém segura este país”, e a vitória na Copa fatalmente aumentaria o prestígio do famigerado regime. Quando a seleção entrou em campo, porém, ele percebeu que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa” e que era impossível torcer contra o Brasil.

Uma nova seleção entrou em campo no dia 1º de janeiro. Podemos não concordar com o acerto na convocação dos jogadores, ou com a tática da equipe. Devemos mesmo manifestar nossas opiniões críticas e alertar para riscos nos caminhos escolhidos; mas não podemos torcer, muito menos agir, contra o Brasil.

Eu torcerei especialmente por três jogadores dessa equipe: Marina Silva, uma craque incumbida de fazer uma marcação cerrada contra a destruição do meio ambiente em geral e da Amazônia em particular, Simone Tebet, uma guerreira a quem caberá, entre outras coisas, promover o resgate do Orçamento como instrumento de gestão e a melhora de nossas políticas públicas, e o ministro Fernando Haddad, sobre cujos ombros repousa a responsabilidade maior pela consistência econômica da política governamental.

Vai, Brasil!

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2023/01/torcer-pelo-brasil.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher