Entrevistas

Pastore teme dominância fiscal; arcabouço não resolve “doença degenerativa”

Brazil Journal

No simplismo dos argumentos dos debates instantâneos nas redes sociais, é comum ouvir críticos do Governo e adversários do PT afirmando que o Brasil ruma a passos acelerados para se tornar “a próxima Argentina”. O economista Affonso Celso Pastore, tão ortodoxo quanto rigoroso em suas análises, rejeita a comparação. “A Argentina ninguém consegue reproduzir,” Pastore disse ao Brazil Journal. Isso não quer dizer que Pastore, presidente do Banco Central de 1983 a 1985 e um dos mais respeitados macroenomistas do País, não esteja preocupado – e muito. “O que está aí montado é uma marcha a passo batido na direção da dominância fiscal,” disse Pastore. “Não tenho dúvida de afirmar isso. E o responsável é o Governo.”

Dominância fiscal é uma situação na qual a política monetária perde a eficácia no combate à inflação, dado o ambiente de dívida em alta e contas públicas desordenadas.

Segundo Pastore, “não significa que vai tudo explodir amanhã.” “O que estou dizendo é que o organismo econômico vai degenerar ao longo do tempo”, com baixo crescimento, juro real muito alto e inflação desancorada. “Isso é uma forma de dominância fiscal.”

A razão para essa “doença degenerativa” na economia é a forte expansão dos gastos públicos, que não será contida pelo novo arcabouço fiscal. Ao mesmo tempo, há a tentativa de “enfraquecer o BC por dentro”, e um exemplo disso foi a indicação do heterodoxo Gabriel Galípolo para a diretoria da instituição.

“O mercado está olhando para essa guerra aberta contra o Banco Central, inclusive com a invasão do Galípolo,” disse Pastore, numa alusão à invasão de Galípoli, um erro de Churchill na Primeira Guerra Mundial.

Sobre a pressão política e de parte do mercado para o BC iniciar o ciclo de corte da Selic, Pastore diz que um banqueiro central precisa ter independência não só política, mas também em relação ao mercado. “Não pode reagir entregando ao mercado aquilo que foi plantado na curva de juros,” a menos que as condições o permitam.

A seguir, os principais trechos da conversa.

Houve uma queda nos juros mais longos. O dólar cedeu. De onde vem essa maior confiança do mercado?

Precisamos distinguir na curva de juros o que é juro nominal e o que é juro real. Juro nominal é a taxa real mais a expectativa de inflação. A curva de juro real (as NTN-Bs) pode estar parada e a curva nominal (o DI) cai, porque o mercado vê um prêmio menor de inflação ou começa a esperar uma redução da Selic.

O juro real está parado no Brasil, não está caindo. Se eu tiver que olhar qual curva reflete melhor o prêmio de risco fiscal, eu tenho que olhar para a curva do juro real.

A NTN-B de dez anos está pagando taxa real de 6%, e isso não tem nada a ver com a expectativa de inflação. Isso tem a ver com prêmio de risco. Devemos separar a parte fiscal da monetária.

Na parte fiscal, quem lê a primeira linha do arcabouço, tem uma regra de que a despesa não pode crescer mais do que 70% do crescimento da receita. Aí haveria uma redução do déficit primário, que iria para um superávit.

Quando você lê o resto do arcabouço e começa a fazer conta, e não precisa mais do que a aritmética elementar, você descobre o seguinte: não há como o Governo cumprir essa meta, a não ser que ele tenha um aumento muito grande da carga tributária, que eu não sei como ele vai obter.

Em segundo lugar, não impede o crescimento da relação dívida/PIB. Tem dois caras que eu respeito muito, que são o Marcos Lisboa e o Marcos Mendes. Eles puseram mãos à obra, fizeram as contas e descobriram que, para atingir as metas, seria necessário um aumento real da receita acima de 4% ao ano.

Ainda assim, a dívida pública deve chegar ao final do Governo Lula em 85% do PIB. Tem gente que acha que 85% é melhor do que 90%, como disse a ministra Simone Tebet. Acho que ela está enganada.

É uma dívida grande demais no caso brasileiro. E é essa percepção de aumento da dívida que produz o prêmio de risco que está na curva de juro real.

É uma ilusão dizer que o mercado esteja otimista com relação à parte fiscal. A parte fiscal está muito ruim.

Os ataques ao BC impactam as expectativas?

O mercado está olhando para essa guerra aberta contra o Banco Central, inclusive com a invasão do Galípolo.

Falo invasão do Galípolo porque me fez lembrar a invasão de Galípoli, um erro de Churchill na Primeira Guerra Mundial. Ele expôs a Inglaterra a um problema sério.

O Governo está tentando, com a invasão do Galípolo, ganhar a guerra contra a taxa de juro alta. Estão invadindo o Banco Central para poder enfraquecer o BC por dentro.

Vou fazer uma analogia com a física. Em 25 de dezembro de 2021, foi lançado o telescópio James Webb. A previsão é que no dia 24 de janeiro de 2022 ele chegaria ao seu destino, o ponto de Lagrange, onde a massa do Sol e a massa da Terra entram em equilíbrio. Ele chegou no dia previsto. Isso só foi possível porque os modelos da física permitem prever a trajetória exata.

Bem, outro dia morreu o economista Robert Lucas. Ele nos ensinou muitas coisas. Uma delas é que a política econômica não é um jogo contra a natureza, é um jogo contra agentes racionais. Quando você gera uma alteração no comportamento, o agente racional reage e muda a expectativa. Determinar a inflação depende da expectativa. Por isso que os economistas falam tanto que as expectativas precisam estar ancoradas na meta.

Os agentes econômicos são racionais. Pegam as informações que estão disponíveis e em cima dessas informações projetam o futuro.

O que eles estão vendo? Contrariamente ao que diz a ministra Tebet, a inflação no Brasil é claramente uma inflação de demanda. Olha o que aconteceu com o dado da pesquisa mensal do comércio. Olha o que aconteceu dias atrás com a pesquisa mensal do serviço.

Por que o aperto na Selic demora a conter a inflação, mesmo nos itens mais sensíveis ao aperto monetário?

Ainda no Governo Bolsonaro, principalmente quando ele tentou comprar os votos na tentativa de reeleição, houve uma enorme expansão fiscal. Essa enorme expansão fiscal não foi interrompida, porque depois veio a PEC da Transição, que consolidou o aumento de despesas.

A política fiscal está fortemente expansionista. Está atuando com sinal contrário ao da política monetária, que tem que ser restritiva para cortar o excesso de demanda e fazer essa inflação convergir para a meta.

Mas o Governo tem um modelo na cabeça dele que é um modelo muito diferente. É um modelo no qual, segundo eles, a demanda gera a sua própria oferta. Para esse Governo, o aumento do gasto público automaticamente produz o crescimento.

Ao fazer isso, os agentes econômicos racionais concluem que ele está agindo contra o movimento que produz a estabilidade de preço, e consequentemente haverá uma expectativa de inflação em alta.

A crítica que se faz com frequência é que o BC acaba ficando refém das expectativas do mercado, resumidas no Boletim Focus, e o Focus erra muito. O senhor discorda?

O Focus erra menos do que dizem, é um bom previsor. Quando olhamos para a desancoragem de inflação dois anos à frente, quando o Campos Neto não deverá mais estar no BC, vemos que existe uma desancoragem semelhante à ocorrida quando o Alexandre Tombini fez aquele erro de reduzir a taxa de juros quando não devia.

O mercado precificou um corte na Selic a partir de setembro. O BC está amarrado nessa expectativa de redução no segundo semestre ou vai comprar mais essa batalha, se as condições não permitirem o alívio monetário?

Se as expectativas estiverem ancoradas, com inflação para baixo, acho que ele pode começar a reduzir. Senão, não vai cortar.

O Alan Blinder [economista americano, professor em Princeton e ex-vice chairman do Federal Reserve] publicou recentemente o livro A Monetary and Fiscal History of the United States. Uma das coisas que ele coloca é o seguinte: o banqueiro central tem que ter um tipo de independência que é independência no uso do instrumento com o qual ele obtém o seu objetivo. Esse instrumento é a taxa de juros. Ele tem que ter liberdade para mover o instrumento e alcançar o objetivo de estabilidade de preços e inflação baixa.

Por quê? Porque isso é condição necessária, embora não seja suficiente, para que haja um ambiente de negócios que produza crescimento econômico. Em última instância, essa é a tarefa do BC. Então ele tem que ser independente e perseguir o seu mandato.

Não é apenas independência política, é independência também em relação ao mercado. Ele não pode reagir seguindo o mercado ou entregando ao mercado aquilo que foi plantado na curva de juros.

O mercado plantou uma redução da taxa de juros em setembro. Se o BC ceder a isso, vai receber aplausos. Mas ele precisa ser independente do mercado.

Não tenho dúvida de que quem se sentou naquela cadeira do BC tenha lido os livros do Alan Blinder. Sabe que não está lá para satisfazer o mercado.

Não conheço todos os diretores. Tenho ouvido as falas do Campos Neto e do Diogo Guillen (diretor de Política Econômica). Eles têm sido absolutamente coerentes.

Se decidirem reduzir a Selic, não tenha dúvida de que alguma coisa se passou com as expectativas e com a inflação. Em caso contrário, o mercado vai se frustrar.

O senhor não vê nenhuma iniciativa positiva na área econômica?

O que podem conseguir de positivo é a aprovação de uma reforma tributária no modelo proposto pelo Bernard Appy. Aí talvez consigam dar um passo à frente. Mas ainda não é algo concreto.

No mais, o Governo está contrário ao Banco Central. Na medida que isso acontece, você gera um choque frontal, o que confunde os agentes econômicos. Isso atrapalha o próprio Governo, piora os resultados.

Num relatório desta semana, sua consultoria afirma que o País caminha para uma situação de dominância fiscal. Não é uma conclusão muito radical?

Meus colegas economistas estão com vergonha de reconhecer que nós estamos diante de um problema de dominância fiscal.

Em 1981, Thomas Sargent, que ganharia depois o Nobel, e Neil Wallace publicaram o artigo “Some Unpleasant Monetarist Arithmetic”. Eles descrevem um jogo não cooperativo de soma não nula entre uma autoridade monetária e uma autoridade fiscal, ambas independentes.

O que eles colocam é o seguinte: se a autoridade fiscal expandir o gasto de forma a gerar um crescimento não sustentável da dívida, a autoridade monetária pode resistir por algum tempo, mas ao final ela não evita a inflação.

Precisamos reconhecer que o que está aí montado é uma marcha a passo batido na direção da dominância fiscal. Não tenho dúvida de afirmar isto. E o responsável é o Governo.

Dominância fiscal não significa que vai tudo explodir amanhã. Você não vai morrer de uma hora para outra. É uma doença degenerativa, na qual o organismo econômico vai se enfraquecendo. Isso se manifesta com baixo crescimento, taxas de juros reais muito altas e inflação elevada. Isso é uma forma de dominância fiscal.

Corremos então o risco de sermos uma nova Argentina, como repetem os adversários do PT?

A Argentina ninguém consegue reproduzir. Eles dolarizaram a economia e geraram uma crise sem paralelos.

Não vamos fazer analogia com a Argentina e nem quero que ninguém coloque na minha boca que eu disse que nós vamos ter uma crise aguda. O que estou dizendo é o seguinte: o organismo econômico vai degenerar ao longo do tempo. Com essa política econômica, não tem outro final.

Quando você faz uma crítica e dizem que poderia ser pior e que o Brasil é assim, por isso precisamos nos conformar, eu digo o seguinte: essas pessoas deveriam unir forças com outras pessoas na sociedade civil que estão alertando para os caminhos e descaminhos em que esse Governo está nos conduzindo.

Está certo, o outro Governo nos colocava sob o risco de irmos para uma ditadura. Tivemos que batalhar contra o Governo passado. Votar contra o Bolsonaro não tem nada de errado. Agora, não é porque você votou contra o Bolsonaro que você tem que declarar que o Lula está correto.

O Lula está errado.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento, no Governo Geisel, propunha políticas protecionistas e de subsídios à indústria que tiveram um alto custo para o País. Algumas daquelas ideias foram recicladas nos governos Lula 1 e Dilma, e agora podem voltar novamente. Existe a discussão sobre o carro popular e, mais uma vez, o incentivo para a indústria naval. Por que projetos como esses, que nunca deram certo, acabam sendo retomados? De onde vem a crença de que desta vez será diferente?

O impulso que vem do populismo é mais forte do que qualquer outro impulso. O que você está vendo aí é populismo. Nada disso visa o bem-estar geral da sociedade. Visa manter um certo grau de popularidade.

Quando a popularidade de Lula cai, não sei qual é o conversor que existe lá dentro do ser humano chamado Lula, quando ele vê isso acontecer, ele reage mal. Aumenta a dose de populismo.

Em vez de termos um modelo dinâmico, que convirja para o bom equilíbrio, temos um modelo que vai para o mau equilíbrio. A tendência é muito negativa.

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