Não tem sentido a obsessão em mexer no regime constitucional dos servidores públicos efetivos
Globo
No Congresso Nacional e na imprensa, ressurgiu recentemente um debate sobre reforma administrativa. Ele havia sido mal proposto pelo governo anterior, e depois acabara abandonado, felizmente.
Serão mesmo necessárias reformas estruturais em nossas administrações públicas? Reformar o quê? Com que orientações? Será viável mexer com as corporações?
O retorno desse tema tabu abre espaço a um olhar mais realista. Não tem sentido a obsessão em mexer no regime constitucional dos servidores públicos efetivos (aqueles que fazem concurso e se tornam estáveis após três anos, e só existem nas administrações diretas e nas autarquias). É um caminho difícil demais para perseguir eficiência administrativa e menores gastos no curto ou médio prazo.
Verdade que as normas atuais da Constituição não são adequadas. Mas gastar energia com elas é entrar em um túnel escuro. Pior: é ir na contramão das mudanças que produziram resultados rápidos ao longo do tempo.
O que andou funcionando para entregar mais serviços à população, com mais eficiência e qualidade? Foi a estratégia de recorrer a organizações com mais autonomia: tanto a decisória, relativa aos meios para atingir seus fins, como a operacional, em matérias como pessoal (fixação do quadro, admissão, gestão de desempenho, desligamento, remuneração), captação e aplicação de recursos, celebração e gestão de contratos, parcerias, etc.
Mesmo no interior da máquina pública o grau de autonomia das organizações varia. Entre os anos 1930 e o final dos anos 1960, mais ou menos, as autarquias tiveram razoável autonomia decisória e operacional; por isso prestaram serviços adequados em saúde, previdência, rodovias, etc. Mas pouco a pouco o peso das normas e controles enrijeceu sua estrutura e operação. Elas acabaram perdendo quase toda autonomia.
Aí se passou a recorrer bastante às chamadas entidades estatais de direito privado (empresas estatais e fundações estatais). Até o final dos anos 1980 elas tinham autonomia significativa. Mas, após a Constituição de 1988 e as sucessivas leis de licitação, bem como em virtude da ascensão de controles públicos hiperinterventivos, boa parte delas foi se robotizando. Hoje elas sofrem com excesso de rigidez, burocracia e instabilidade jurídica. No âmbito federal, por exemplo, as fundações que existiam funcionam hoje como verdadeiras autarquias, quase nada autônomas.
Quanto às empresas estatais, embora sejam atualmente bem menos autônomas do que foram, elas ainda permitem flexibilidades que ajudam. Em especial porque contratam empregados pela CLT e seu quadro de pessoal é decidido internamente, e não pelo Legislativo (como ocorre com a administração direta e as autarquias). Foi por isso que, em 2011, o governo federal criou a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que apoia dezenas de hospitais universitários federais, nos quais o maior desafio é lidar com gestão de pessoal.
Empresas estatais que funcionaram muito bem em seus anos iniciais, como a Embrapa (crida em 1973 e que atua como um grande instituto de pesquisas agropecuárias), foram se ressentindo com burocracia imposta de fora, o que foi afetando sua autonomia. Hoje, várias delas estão buscando alternativas de reforma em busca de eficiência e eficácia. Mexer no regime dos servidores públicos efetivos não vai ajudá-las em nada.
Qual solução de reforma os governos passaram a adotar caso a caso a partir dos anos 1990? Eles vêm recorrendo a entidades de fora, mas com laços fortes com o Estado. O que há de atraente nelas? Muito simples: sua autonomia operacional.
Em alguns casos, usou-se o modelo de serviço social autônomo, que havia sido concebido para o Sistema S nos anos 1940. Isso foi feito na criação da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e da Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) e, mais recentemente, na transformação da Embratur. Mas é um modelo com fragilidades jurídicas, difícil de conciliar com a Constituição.
A solução mais frequente, e com menos fragilidades, tem sido recorrer a entes de colaboração com o Estado. Em certos casos, usam-se fundações de apoio (como a Fundação Butantã, no Estado de São Paulo). Em outros, organizações sociais (como a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, de assistência à saúde). Esses modelos têm base legal e vêm ajudando, embora com alguma instabilidade ou contestação.
Diante desse quadro, o tipo de reforma administrativa que faz sentido priorizar é, em primeiro lugar, ir ampliando as responsabilidades públicas atribuídas a organizações sociais, fundações de apoio e outros entes de colaboração. Essa, aliás, será a única alternativa enquanto faltar apetite — ou espaço na agenda política — para aprimorar normas legais de caráter geral. É verdade que a governança de algumas dessas entidades precisa melhorar. Mas dá para impor isso pela via contratual — com o cuidado, claro, de não comprometer suas autonomias.
Outra alternativa, mais estrutural, é recuperar a figura da fundação estatal de direito privado, abandonada há cerca de 30 anos na esfera federal. Alguns Estados brasileiros a têm utilizado. E o Supremo Tribunal Federal já confirmou que são viáveis constitucionalmente. O melhor seria editar uma lei nacional para assegurar a elas autonomia e boa governança, com segurança jurídica. Em seguida, ir convertendo paulatinamente para esse modelo certos órgãos, autarquias, universidades públicas e, em alguns casos, mesmo empresas.
Mas talvez, por razões políticas, seja difícil discutir uma lei geral dessa envergadura no curto prazo. Aí o único modo de avançar será escolher uma entidade que precise de reforma e, por meio de lei pontual, convertê-la em uma verdadeira fundação estatal de direito privado, regulando seus detalhes, e depois ir medindo seus resultados. É uma saída experimental, que pode abrir caminho para reformas incrementais.
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