Entrevistas

Desempenho e ‘Penduricalhos’: Ana Carla Abrão discute as alavancas para a Reforma Administrativa

Especialista criticou a PEC 32 e ofereceu análises detalhadas sobre ineficiência governamental, defendendo uma revisão total das carreiras no setor público

Exame.com

Em um momento em que a possibilidade de aprovação da reforma administrativa reverbera na Câmara dos Deputados do Brasil, alinhada às declarações do presidente da Câmara, Arthur Lira, o Instituto Millenium procurou uma especialista no assunto: Ana Carla Abrão, doutora em Economia pela Universidade de São Paulo e atual vice-presidente de Novos Negócios da B3. Abrão, cuja carreira inclui experiências no Banco Central do Brasil, Itaú Unibanco e a liderança da Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás, traça um argumento persuasivo sobre a necessidade da reforma.

Ela expressa críticas à Proposta de Emenda à Constituição 32 (PEC 32) e oferece análises detalhadas sobre a ineficiência governamental, defendendo uma revisão total das carreiras no setor público. Ela também sublinha a importância de implementar sistemas de avaliação de desempenho bem estruturados e eliminar os “penduricalhos”, adicionais que, além de serem percebidos como injustos e caros, criam distorções que afetam a produtividade dos servidores públicos.

A aprovação de uma reforma coerente, conforme delineada por Abrão, exigiria que o projeto fosse uma prioridade na agenda governamental, e que o governo assumisse os custos de explicar e convencer a sociedade e os atores políticos sobre a importância da medida – algo que ela avalia não ter sido uma prioridade dos governos anteriores ou do atual. Abrão destaca que a reação dos interesses corporativos é o principal obstáculo para a aprovação da reforma no Brasil hoje, mas também reconhece que existem boas práticas em nível subnacional que indicam a viabilidade da reforma e o caminho a seguir. Abaixo, você encontra a entrevista na íntegra, onde são discutidos pontos-chave da reforma e o cenário esperado para os próximos meses.

Instituto Millenium: Ana Carla, em decorrência das recentes declarações do presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, estamos voltando a discutir a reforma administrativa no nível federal, algo que muitos não esperavam ver ocorrer neste governo. Quais são suas perspectivas para essa discussão que aparenta renascer agora? O que você espera desse debate que está ressurgindo?

Ana Carla Abrão: Eu acredito que o ponto principal aqui é garantir que o debate não morra. Debater o tema, envolvendo a sociedade, o Congresso e o próprio Executivo, é fundamental. Quando olhamos em retrospectiva, vemos que o que nos levou à aprovação da reforma da Previdência, e possivelmente nos levará à aprovação da reforma tributária, é o amadurecimento do debate. É a compreensão da importância, do impacto, e a consciência de que isso pode ser absolutamente transformador para o Brasil. Portanto, o debate é sempre bem-vindo, e é essencial que não deixemos esse assunto morrer.

Agora, falando especificamente da retomada desse debate nas últimas semanas, sou menos otimista em relação aos resultados de curto prazo, pois é um assunto muito complexo, que exige uma mudança estrutural no funcionamento da máquina pública no Brasil. Não há solução fácil. Esse debate não se resume a questões como “vamos acabar com a estabilidade” ou “vamos fazer mais concurso público” ou “vamos pagar mais ou menos salários para os servidores públicos”. Se não compreendermos a amplitude e complexidade dele, tendemos a simplificá-lo. Como todo problema difícil, a solução não é simples. Se optarmos por uma solução mais simples, poderemos trazer mais distorção do que efetivamente resolver o problema.

A minha preocupação hoje é que no curto prazo não conseguiremos fazer grandes mudanças. A PEC 32, como está, não resolve o problema; na verdade, piora a situação. Não vejo a solução ali. Eu tenho trabalhado com Carlos Ari Sundfeld e Armínio Fraga, defendendo uma mudança muito mais estrutural no ponto de vista da própria estrutura de carreiras, da forma como os servidores estão distribuídos e estruturados na máquina pública. Precisamos mudar um modelo operacional vigente, e isso requer um debate mais amplo do que o que está proposto na PEC 32, e até mesmo do que a atual preocupação do governo, que está mais focada em resolver a escassez de mão de obra no setor público brasileiro. Portanto, vamos debater e avançar nesse tema tão relevante para o país, mas precisamos fazê-lo com cautela e responsabilidade, entendendo que a mudança precisa ser estrutural e que tal transformação não acontece do dia para a noite.

IM: Tivemos a oportunidade de discutir o tema da reforma administrativa durante o último governo, com a apresentação da PEC 32, e também devido ao fato de que vários estados realizaram suas reformas administrativas nos últimos anos, algumas delas com o seu suporte técnico, como consultora. O que você acredita que aprendemos após esses anos debatendo o assunto no âmbito público e no Congresso, bem como com essas experiências dos estados? Houve algum avanço, na sua opinião, em entender qual é o problema?

ACA: Sim, com certeza. Temos exemplos meritórios, como foi o caso do governador Paulo Hartung, no Espírito Santo, que conduziu uma reforma administrativa significativa. Mais recentemente, o governador Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul, também implementou uma reforma administrativa importante, revendo aspectos fundamentais da estrutura e todas as leis de carreira do Estado. Então, sim, temos situações que merecem destaque e aplausos, mas ainda são casos pontuais.

É claro, essas experiências indicam que é possível mudar! Não só é possível como também podemos ir mais longe se houver coordenação, isto é, apoio do governo federal, para estender a reforma aos 27 estados e mais de 5 mil municípios. Não tenho dúvida disso. Mas essa transformação exige prioridade na agenda política, algo que não parece ser o caso no momento, e precisa de coordenação a partir do governo federal. É uma agenda que demanda enfrentar algumas resistências e interesses bem estabelecidos, o que talvez explique parte do meu ceticismo em relação a essa agenda no curto prazo. No entanto, com o debate e ações pontuais, começamos a ganhar corpo e massa para que essa questão continue em pauta e, em algum momento, de fato se torne prioridade.

IM: Se você tivesse que listar duas ou três alavancas indispensáveis para aprovar uma reforma administrativa, quais seriam elas, em sua avaliação?

ACA: Primeiramente, é crucial revisar o número de carreiras. Precisamos consolidar essas carreiras em três grandes grupos: atividades finalísticas, atividades meio, e eventualmente atividades vinculadas às funções típicas de estado. Não se trata necessariamente de rotular dessa forma, mas de consolidar essas mais de 300 carreiras no caso federal e, nos estados e municípios, igualmente na ordem de centenas. É preciso revisar todo o sistema de carreiras, aglutiná-las para que tenhamos um número mais administrável e permita harmonizar essas leis.

O segundo aspecto é a regulamentação do artigo 41 da Constituição, que aborda a Avaliação de Desempenho. Esta avaliação, na verdade, não existe em nenhum estado brasileiro. Há quem alegue que essa avaliação já esteja em prática em alguns governos, mas são raríssimas as experiências de avaliação de desempenho no Brasil que realmente medem a produtividade dos servidores públicos. A avaliação de desempenho é um processo delicado, que requer a estruturação de um modelo muito bem planejado. Precisa ser primeiro implantado em projetos piloto, calibrado e harmonizado em toda a administração pública. Estamos muito longe disso, sem nem mesmo regulamentação da avaliação de desempenho, quem dirá a prática.

O terceiro ponto, e não menos importante, é a eliminação desses “penduricalhos” que temos na legislação, como férias de 60 dias, a possibilidade do servidor se candidatar sem perder o salário mesmo não estando em serviço, pedir licença para se candidatar com remuneração, e a aposentadoria como punição. Existem várias dessas aberrações, e acho que esse é o termo mais apropriado para esses excessos. Eles precisam ser retirados da legislação brasileira e do serviço público. Está mais do que na hora de extinguir esses elementos.

IM: É interessante perceber que as duas primeiras medidas que você mencionou não trazem necessariamente um ganho fiscal imediato. Portanto, essa discussão não se limita a reduzir custos. O que você pensa sobre isso?

ACA: A reforma administrativa não deve ser pautada primariamente por uma perspectiva fiscal. Na verdade, a questão central é a eficiência do setor público, a qualidade dos serviços oferecidos e a equidade interna no tratamento dos servidores. É fundamental entender que a desigualdade salarial dentro do setor público muitas vezes supera a desigualdade de renda existente no país como um todo.

Não se deve esperar ganhos fiscais substanciais no curto prazo com uma reforma administrativa bem elaborada. Os benefícios prováveis viriam a longo prazo, através de melhorias na eficiência e possíveis reduções de custos decorrentes dessa eficiência elevada. No entanto, até mesmo essas economias são difíceis de mensurar com precisão.

O setor público brasileiro, em muitas áreas, está carente de investimentos e modernização. Isso se reflete nas condições de trabalho de muitos servidores e nas discrepâncias salariais, onde aqueles que atendem diretamente o cidadão muitas vezes recebem remunerações incompatíveis com a importância e complexidade de suas funções.

Ao discutirmos avaliação de desempenho, o cenário atual em que todos são avaliados positivamente e recebem bônus por bom desempenho é insustentável e contraproducente. É preciso estabelecer sistemas de avaliação que diferenciem o desempenho dos servidores, recompensando genuinamente aqueles que se destacam e garantindo que os padrões de serviço sejam elevados.

Em resumo, a perspectiva fiscal não deve ser o principal direcionador dessa discussão. Se o fizermos, corremos o risco de confundir um debate que já é complexo, dadas as circunstâncias fiscais em que o Brasil se encontra. E essa confusão poderia atrapalhar, ao invés de ajudar, os esforços de reforma administrativa.

IM: Dado que não há um ganho fiscal de curto prazo, pode ser complicado obter apoio das áreas fiscais de governo para a reforma administrativa. Como você foi secretária da fazenda em Goiás, seria ótimo ouvir sua opinião sobre isso. Você acha que é possível obter esse apoio, considerando que a reforma não trará retorno fiscal imediato? E você acha que a falta de apoio das áreas fiscais pode ser um impedimento para a aprovação da reforma?

ACA: Eu acredito que a eventual falta de apoio das áreas fiscais não é o que está impedindo a reforma administrativa de avançar. O real obstáculo não está no impacto fiscal de curto prazo, seja ele presente ou não. A verdadeira barreira vem dos interesses corporativos muito bem estabelecidos dentro do serviço público.

A máquina do Estado brasileiro está, em muitos aspectos, capturada por interesses específicos, e qualquer reforma que mexa com esses interesses enfrenta reações vigorosas. No caso da reforma administrativa, a reação vem de dentro da própria máquina, mas não são apenas os servidores públicos que resistem às mudanças; há várias outras corporações em diferentes áreas que reagem da mesma forma.

Acelerar a aprovação de uma reforma administrativa é, portanto, um desafio monumental. Exige debates árduos, energia política, esforço, convencimento e diálogo, especialmente com as corporações que representam os interesses dos servidores públicos. É um debate que consome tanta energia, que é difícil colocá-lo na agenda do governo com a força necessária.

Para ter fundamento e consistência, a reforma administrativa precisa ser parte de uma agenda mais ampla do governo. Infelizmente, ainda não conseguimos colocar esse debate no topo da agenda, de modo que toda a energia necessária seja canalizada para avançar nessa direção. Governos anteriores introduziram projetos nesse sentido, mas nunca se empenharam verdadeiramente na luta. O governo atual parece seguir na mesma direção, não mostrando disposição para enfrentar uma batalha que exige energia e não se alinha com suas prioridades atuais para a área.

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