Reforma administrativa via controle externo não parece caminho seguro
Carlos Ari Sundfeld e Conrado Tristão
JOTA
O Tribunal de Contas da União (TCU) está analisando a regularidade da nomeação do atual presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A controvérsia gira em torno do regime de nomeação e mandato dos dirigentes das agências reguladoras.
Uma das propostas de deliberação em discussão na corte envolve a antecipação da saída do presidente da Anatel, bem como o encurtamento dos mandatos de presidentes de outras quatro agências federais. Atualmente o processo está suspenso por pedido de vista.
O caso tem chamado a atenção pela extrapolação de competências por parte do TCU, com ministros defendendo a possibilidade de o tribunal controlar a posteriori nomeações para agências reguladoras – o que não tem respaldo constitucional nem legal.
Mas o episódio também dá ensejo a outro tipo de reflexão: reformar o regime de nomeação e mandato dos dirigentes, via controle externo da administração, é um caminho democrático e seguro para o aprimoramento das agências reguladoras?
Essa é a provocação que inspira o presente artigo, cuja conclusão é cética a respeito dessa alternativa. Para isso, é preciso um passo para trás: qual o regime do pessoal que ocupa a direção das agências reguladoras?
As agências reguladoras foram pensadas como entidades com elevado grau de autonomia, para poderem realizar suas missões sem interferências externas. Cada agência é dirigida por um colegiado escolhido através de sistema que favorece a desvinculação entre seus integrantes e o Poder Executivo.
O regime geral de nomeação e mandato do pessoal que compõe esse colegiado está previsto na Lei de Recursos Humanos das Agências Reguladoras (Lei 9.986 de 2000), recentemente alterada pela Lei Geral das Agências (Lei 13.848 de 2019).
A lei prevê que “as agências terão como órgão máximo o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada, que será composto de até 4 (quatro) Conselheiros ou Diretores e 1 (um) Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral” (art. 4º, caput), com “mandato … de 5 (cinco) anos, vedada a recondução” (art. 6º, caput).
Além disso, os mandatos devem ser “não coincidentes, de modo que, sempre que possível, a cada ano, ocorra o término de um mandato e uma consequente nova indicação” (art. 4º, § 1º). Para a manutenção dessa dinâmica, “os mandatos que não forem providos no mesmo ano em que ocorrer sua vacância terão a duração reduzida” (art. 4º, § 2º).
Que controvérsia levou o tema dos dirigentes de agências ao TCU?
O governo anterior indicou, e o Senado aprovou, para os cargos de presidentes de algumas agências, nomes que já ocupavam cargos de diretores nas mesmas entidades. Foi o caso do atual presidente da Anatel, que, antes de ser nomeado para a presidência, em 2022, já ocupava o cargo de conselheiro, desde 2020.
Ficou a dúvida: a nomeação de diretor para um novo mandato, agora no cargo de presidente, na mesma agência, caracterizaria recondução (vedada pela lei desde 2019)?
Sob a lei vigente, a norma parece permitir duas interpretações diferentes, nenhuma delas absurda. Se tal prática caracterizar recondução, diretores simplesmente não podem ser nomeados para a presidência da mesma agência. Essa interpretação valoriza o fato de ambos os cargos (diretor e presidente) pertencerem à mesma diretoria e os considera idênticos para fins de incidência da regra de não recondução.
Se não caracterizar recondução, diretores podem ser nomeados para a presidência, para exercê-la por todo o prazo disponível do mandato do cargo de presidente (que pode chegar a cinco anos, dependendo de quando tiver ocorrido a vacância). Essa interpretação valoriza o fato de os cargos de diretor e de presidente serem distintos e, por isso, não os aproxima para fins da regra de não recondução.
A interpretação adotada no passado foi a segunda, como defendeu recentemente o presidente do Senado. Mas a área técnica do TCU entendeu que haveria irregularidade, levando o caso ao tribunal, onde o relator propôs uma terceira interpretação.
A nomeação de diretor para a presidência seria possível, mas com uma restrição temporal: “a soma da permanência nos dois cargos não poderia ultrapassar os cinco anos previstos pela legislação em vigor, sendo permitida a nomeação do Conselheiro, para atuar no exercício da Presidência do Conselho da Anatel, até o advento do termo final desse período legal de 5 anos”.
Se tal entendimento prevalecer no TCU, representará verdadeira inovação no regime de nomeação e mandato do pessoal que dirige as agências reguladoras. Uma espécie de micro reforma administrativa. Isso tanto porque a interpretação vigente era outra, como porque não se tratava de interpretação manifestamente ilegal – embora, claro, seja legítimo preferir outra interpretação, como é tão comum no Direito.
Mais impactante ainda é se, ao mudar a interpretação anterior, o TCU, desafiando o art. 24 da nova LINDB, pretender que ela seja aplicada com efeito retroativo, para o fim de encurtar mandatos construídos à época em que vigorava outra interpretação.
Mas e qual o problema de o TCU realizar esse tipo de reforma?
É que as reformas no setor público com bons resultados costumam ser aquelas que optam por caminhos jurídicos mais seguros, além de paulatinos e respeitosos dos espaços mais democráticos de deliberação política. Isto é: caminhos jurídicos que buscam consensos políticos e permitam algum tipo de transição e de teste quanto a novas regras, passíveis da adoção de novos rumos quando for o caso, e capazes de preservar o aprendizado institucional.
No geral, esse caminho tem sido o das reformas via legislação: reformas por meio de leis ordinárias ou complementares, discutidas e aprovadas no âmbito do Poder Legislativo, com regras adequadas de transição. É o que mostra, inclusive, o histórico do próprio regime de nomeação e mandato dos dirigentes das agências, a partir do marco representado pela Anatel.
A Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472, de 1997), que criou a Anatel, previa, em sua redação original, que os dirigentes da agência seriam “escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal” (art. 23); com mandato fixo de “cinco anos, vedada a recondução” (art. 24, caput); e que “somente perderão o mandato em virtude de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar” (art. 26, caput).
A lei também já trouxe regras para viabilizar a não coincidência de mandatos. Previu que “os mandatos dos primeiros membros do Conselho Diretor serão de três, quatro, cinco, seis e sete anos, a serem estabelecidos no decreto de nomeação” (art. 25).
Para preservar essa lógica, previu também que, “em caso de vaga no curso do mandato, este será completado por sucessor …, que o exercerá pelo prazo remanescente” (art. 24, parágrafo único).
Essas regras diferenciavam a Anatel de outras duas agências criadas no mesmo período, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), pela Lei 9.427 de 1996, e a Agência Nacional do Petróleo (ANP), pela Lei 9.478 de 1997.
As leis da Aneel e da ANP permitiam a recondução dos dirigentes, e não asseguravam a não coincidência de mandatos. Além disso, não eram tão claras em relação às hipóteses de perda de mandato, o que gerava certo receio quanto à preservação da autonomia das agências.
Em 2000, a Lei de RH das Agências Reguladoras estendeu às demais agências as hipóteses de exoneração dos dirigentes já previstas na lei da Anatel – renúncia, condenação judicial transitada em julgado ou processo administrativo disciplinar.
Contudo, em outros pontos a lei de 2000 se afastou do modelo original da Anatel, introduzindo como regra geral a possibilidade de recondução dos dirigentes das agências (inclusive na própria Anatel). Além disso, não incorporou as regras que asseguravam a não coincidência de mandatos.
Nas décadas seguintes, na Aneel e ANP, mais de um terço dos dirigentes foram reconduzidos, com frequentes nomeações em bloco de diretores, para mandatos coincidentes ao longo de até 5 anos (ver o estudo Dinâmica de Nomeações das Agências Reguladoras, coordenado por Juliana Palma e Bruno Salama).
Esse quadro foi percebido como problemático, e, em 2019, por meio da Lei Geral de Agências, reformou-se a Lei de RH das Agências Reguladoras. Houve uma espécie de resgate do regime original de mandato e nomeação de dirigentes previsto na lei de criação da Anatel, com a vedação da recondução de dirigentes e efetivação da não coincidência de mandatos. Essa mudança legal foi feita sem destituir dirigentes com mandatos em curso.
O atual regime do pessoal que ocupa a direção das agências não está livre de críticas. Mas sua construção, em geral, seguiu um caminho jurídico de modernização segura e com amplo consenso político.
Reformas via legislação permitiram negociações políticas importantes, bem como que testes precedessem a generalização de regras, que trajetórias fossem desenhadas e o rumo eventualmente corrigido, e que inovações fossem construídas politicamente, no Parlamento, com base em lições já aprendidas no passado.
Eventual inovação no regime de dirigentes das agências via controle externo – e de forma abrupta, além de sem deferência às interpretações jurídicas razoáveis adotadas no passado – como parece estar sendo ensaiado pelo TCU, iria na contramão dessa experiência.
Esta reforma administrativa via TCU seria uma espécie de intervenção, e vincularia de imediato todas as agências reguladoras federais a nova regra, vinda de uma interpretação nova, que não passou por ampla negociação política.
Caso a novidade se mostre problemática, sua correção não seria simples, dependendo de nova decisão do TCU sobre o tema ou, no limite, de mobilização do Poder Legislativo para alterar uma regra que não foi ele quem editou.
E o fato de a reforma ocorrer por meio de uma decisão controladora, formulada e sujeita a mudanças por agentes que não foram eleitos (os ministros do TCU), dificulta o consenso amplo, o aprendizado e a construção de memória institucionais.
No debate público, bem como dentro do Estado, parece ganhar força o entendimento de que reformas por meio de lei, com transições pactuadas, são um caminho seguro para a modernização do setor público, sobretudo no que diz respeito a regimes jurídicos de pessoal.
Em recente entrevista ao JOTA, a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, propôs a substituição da problemática PEC da Reforma Administrativa (uma tentativa de reforma via emenda constitucional) por um conjunto de projetos de lei.
Esse parece ser o caminho mais democráticos e seguro. Sigamos por ele?
Link da publicação: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-tcu-deve-intervir-na-direcao-das-agencias-reguladoras-04092023
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