Entrevistas

Pastore: ‘Governo tem de ter juízo e fazer reformas que permitam cortar gastos’

Ex-presidente do Banco Central diz que governo Lula coloca ‘um papel crucial no aumento de gastos’ e vê corte de juros limitado diante do cenário fiscal expansionista

Estadão

Ex-presidente do Banco CentralAffonso Celso Pastore acredita que a equipe econômica não vai conseguir cumprir a meta de zerar o resultado primário (quanto o governo arrecada e gasta, sem levar em conta o pagamento com juros da dívida) em 2024. Ele diz que o governo deveria “ter juízo”, alterar a estratégia do ajuste fiscal e “fazer reformas que permitam cortar gastos”.

“Eu não tenho dúvida de que o governo não deseja e não quer fazer o contingenciamento de controle de gasto”, afirma. “Esse governo coloca um papel crucial no aumento de gastos. Ele acha que o crescimento econômico do País depende dele.”

Na leitura do ex-presidente do Banco Central, com o aumento de gastos previstos pelo governo, o Banco Central vai ter mais dificuldade para controlar a inflação e isso pode dificultar o corte da taxa básica de juros (Selic). O país pode, então, ter problemas ao mesmo tempo na política fiscal (contas públicas) e monetária (taxa de juros).

Um juro mais alto encarece o crédito para o consumo das famílias e para o investimento das empresas, o que, na ponta, dificulta o crescimento econômico.

“Com a política fiscal expansionista, você cria um problema para o Banco Central. Ele vai ter de reduzir a taxa de juros menos do que ele iria reduzir”, afirma. No modelo de Pastore, o atual cenário permite que a Selic – atualmente em 13,25% ao ano – recue para 10,5%, se o BC quiser chegar na meta de inflação de 2025 (3%).

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Qual é a avaliação que o sr. faz da situação das contas públicas?

Em 2024, o aumento de gastos real (acima da inflação) será de 3,5%. Isso está dado. E o governo diz o seguinte: vou financiar com receitas sem o aumento de alíquota de nenhum imposto. Ele tem de buscar receitas que somam R$ 168 bilhões. Quando a gente percorre a lista do que o governo ofereceu, por exemplo, o negócio das offshores ou o negócio dos fundos fechados, qualquer um deles, você não consegue encontrar os R$ 168 bilhões. Com essas restrições que ele se impôs, é impossível atingir a meta do resultado primário nulo. Estou só falando de 2024, não estou falando de 2025 e 2026. Se não é possível atingir (a meta de déficit zero), o que ele deveria fazer é contingenciar as despesas, não realizar aquilo que faltar. Por exemplo, suponha que dos R$ 168 bilhões, o governo obtém R$ 50 bilhões, tem de contingenciar R$ 118 bilhões, e não realizar essa despesa. Precisa fazer controle de gastos.

O governo deve seguir por esse caminho?

Eu não tenho dúvida de que o governo não deseja e não quer fazer o contingenciamento de controle de gasto. Se ele não conseguir atingir o resultado primário, deveria contingenciar ou pode mudar a meta. Se ele mudar a meta do resultado primário – o que o Haddad tem se negado a fazer -, vai para o espaço a tal da credibilidade e o esforço do governo de reduzir a relação dívida/PIB. Não vejo isso sendo feito. Na minha opinião, e isso não tem nada a ver com o Haddad, esse governo coloca um papel crucial no aumento de gastos. Ele acha que o crescimento econômico do País depende dele, do governo. Não está disposto a transigir nos gastos. No que isso vai dar? Não vai cumprir a meta de superávit primário e a relação dívida/PIB vai subir.

Qual vai ser a consequência?

Com a política fiscal expansionista, você cria um problema para o Banco Central. Ele vai ter de reduzir a taxa de juros menos do que ele iria reduzir. Se o Banco Central mantiver o objetivo de chegar na meta de inflação, nós vamos ter de chegar numa taxa de juros real (taxa de juros nominal descontada a inflação) mais alta no fim do processo, e, consequentemente, com crescimento menor.

Na avaliação do sr., até onde o BC deve ir nesse ciclo de corte de juros, então?

Em 2019, este Banco Central que está aí baixou a taxa de juros erradamente. Eu vou fazer uma crítica ao BC. Quando o Ilan Goldfajn estava no Banco Central, ele tinha uma âncora fiscal muito pesada e firme, que era a âncora de gastos congelados em termos reais. Quando isso acontece, a taxa neutra de juros (aquela que não é contracionista nem expansionista) vem abaixo. O limite no qual o Banco Central pode baixar a taxa de juros é o da taxa neutra. Naquele momento, ele terminou o ciclo de redução trazendo a Selic para 6,5%, e a taxa real de juros ex-ante (esperada para o futuro) de 1 ano bateu em 2%. Isso aconteceu em 2018. Em 2019, ele entregou o BC para o Campos Neto. Naquele momento, as expectativas estavam ancoradas na meta. O Ilan entregou direitinho. Eu vou voltar um pouco: a primeira notícia do vírus covid-19 em Wuhan, na China, aconteceu em dezembro de 2019. Nós só soubemos que havia uma pandemia quando a Organização Mundial de Saúde decretou, já dentro de 2020. Então, o que eu vou relatar não tem a ver com pandemia. Em julho de 2019, de repente, o Banco Central começou a reduzir juros. Quando chegou em dezembro, ele tinha trazido a taxa de juros para 4% e trouxe a taxa de juros real ex-ante de 1 ano para muito abaixo da taxa neutra de juros.

E o que o sr. achou dessa decisão?

Foi um erro crasso de política monetária. E só desapareceu porque veio a pandemia. Na confusão da pandemia, as pessoas não perceberam direito o que estava acontecendo. O meu ponto é que, precisando de mais receitas, o governo comece a pôr pressão no Banco Central para tentar acelerar o crescimento (econômico) e, assim, gerar a receita necessária para poder cumprir a meta de resultado primário. Eu temo que este Banco Central, tendo procedido da forma como procedeu em 2019, ceda a esse tipo de pressão. O que significa que o resultado final desse malfadado exercício fiscal vai ser o Banco Central trabalhar com uma meta implícita de inflação superior à meta (definida). Vamos ter mais inflação do que devia.

O sr. já vê esse cenário com a composição atual do Banco Central, sem levar em contas próximas trocas na diretoria?

Isso. Eu estou dizendo o seguinte: este Banco Central, parecido com o de hoje, estava lá em 2019, quando ele cometeu aquele erro. Quando o Banco Central comete um erro como aquele, ele produz uma depreciação do real. Eu peguei 20 países emergentes, exportadores, não exportadores, etc. O real se depreciou 40%. Nenhum desses países teve essa depreciação. O BC errou a mão da taxa de juros. Baixou o diferencial da taxa de juros do Brasil e dos Estados Unidos mais do que devia. Eu temo o seguinte: se o Banco Central tem esse perfil, eu acho que ele pode errar, e nós não teremos só um problema fiscal. Nós teremos um problema fiscal e um problema monetário.

E se chegar nesse cenário descrito pelo sr., como o investidor olha para o Brasil?

O Brasil não acaba. O País cresce menos, tem uma inflação mais alta, perde oportunidades de crescer. Tudo isso acontece. São as consequências desse tipo de cenário.

Mas o juro pode chegar a quanto no Brasil dado o nosso quadro fiscal?

A visão mais otimista que tem no mercado está colocando o juro entre 9,5% e 10%. A minha calibragem, aqui na consultoria, com as nossas contas com modelo, é de 10,5%, para entregar (a inflação) na meta em 2025. O temor que eu tenho é que o Banco Central vai levar a taxa abaixo desses níveis.

No último comunicado do Copom, um ponto que chamou a atenção foi a falta de sinalização para a questão fiscal. O sr. ainda vê o BC preocupado com o rumo das contas públicas?

O Banco Central só muito recentemente passou a estimativa de taxa neutra dele de 4% para 4,5%. Eu vou dizer o seguinte: 4,5% não é a taxa neutra no Brasil. É mais alta. Política fiscal expansionista produz uma taxa neutra mais alta. O Banco Central tem de estar preocupado em defender o seu mandato, que é trazer a inflação para meta. Não estamos num mundo no qual a vida dele está fácil. A vida do BC está muito difícil. E a pressão que a política fiscal exerce sobre a monetária é material e relevante. Eu acho que (o BC) tinha obrigação de continuar revelando a existência desse tipo de conflito. Não adianta omitir este conflito, porque os seus resultados estão aparecendo. Consequentemente, o Banco Central para ser transparente na comunicação, tinha de estar insistindo na existência do conflito da política fiscal com a monetária.

E, ao longo do governo, o sr. acredita no cumprimento das metas fiscais de 2025 e 2026?

O Brasil é um país que tem das cargas tributárias mais altas do mundo. Temos uma certa vontade de pertencer à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para pertencer a esse grupo, a economia brasileira deveria ter padrões semelhantes aos demais países da OCDE. A nossa carga excede a carga tributária da OCDE. Se não quiser ter uma carga tributária excessiva no Brasil, tem de controlar gastos. O que o governo teria de fazer em 2025 e 2026 é mudar totalmente o enfoque de como está levando a sua proposta de ajuste fiscal. Tem de começar a controlar gastos para evitar um aumento de carga tributária excessivo. Se ele não controlar gastos e não puder fazer esse aumento excessivo de carga tributária, nós vamos ter um crescimento de dívida muito grande. É um crescimento que produz prêmio de risco em tudo quanto é ativo, principalmente na taxa de juros, e impede que o País cresça. O governo tem de ter juízo e fazer reformas que permitam cortar gastos.

Tem uma agenda importante no Ministério do Planejamento de revisão de gastos. Isso não deve andar?

Eu não conheço o detalhe do que estão propondo. O dia que eles propuserem, a gente discute. Por enquanto, estou ouvindo conversas.

Com esse cenário que o sr. desenha, como encerra a relação dívida/PIB?

O mercado financeiro responde a pesquisa Focus, do Banco Central. Em nenhum ano, nem em 2024 nem 2025 nem 2026 a mediana das expectativas de resultado primário da pesquisa dá o resultado primário que o governo diz que é a meta dele. Na pesquisa Focus, tem um déficit de 0,7% do PIB em 2024, também estão previstos déficits em 2025 e 2026. Se a gente seguir a pesquisa Focus, com o atual diferencial entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico, você vai chegar a uma relação de dívida/PIB entre 82% e 85% do PIB lá no final do governo Lula. É uma dívida muito alta para um país emergente, como é o caso brasileiro, com a péssima tradição fiscal que nós temos.

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/economia/entrevista-affonso-celso-pastore-cenario-fiscal/

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