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Nosso espelho sombrio

A Argentina é um modelo do que não se deve fazer em política econômica

Veja

Não falta quem defenda no Brasil novas rodadas de aumento do gasto público, de preferência acompanhadas por reduções generosas das taxas de juros, que supostamente permitiriam a redução das despesas financeiras e o aumento das despesas primárias.

À primeira vista, a coisa pode parecer fazer certo sentido, até que examinemos como tal combinação de política econômica funcionou no nosso principal vizinho e parceiro regional, a Argentina.

De fato, os preços ao consumidor na Argentina aumentaram nada menos do que 138% nos últimos doze meses. Mesmo essa medida, porém, subestima a velocidade de deterioração da inflação platina: em agosto e setembro ela atingiu cerca de 12% ao mês, pouco menos que o dobro do registrado nos meses anteriores.

Vale dizer: na ponta, a inflação argentina roda próximo a 300% ao ano, mesmo com controles de preços, subsídios a serviços públicos e vasta interferência governamental na formação de preços, incluindo um número considerável, ainda que indefinido, de taxas de câmbio.

Não se chega a tamanho grau de desarranjo sem um trabalho sério e persistente de sabotagem das condições macroeconômicas. O governo não registra superávit primário, pelo menos, desde 2011. O Banco Central, por outro lado, mantém as taxas reais de juros em terreno negativo desde o início de 2020.

Somando o risco de calote, por força do desequilíbrio das contas públicas, às taxas negativas de juros, temos fuga de capital, que se materializa num dólar a cada dia mais caro e reservas mais escassas (provavelmente negativas), realimentando a alta de preços e, com ela, recessão e miséria. Dito de outra forma, não há âncora fiscal (controle do gasto) nem monetária (taxas de juros reais positivas) que segurem a inflação.

“Na ponta, a inflação argentina roda próximo a 300% ao ano, mesmo com controle de preços”

Dado que o vencedor do primeiro turno das eleições presidenciais, Sergio Massa, é nada menos do que o ministro da Economia que preside atualmente sobre a enorme desordem econômica, é para lá de duvidoso que tenha condições de corrigir o problema. Não que o segundo colocado, o libertário Javier Milei, as detenha. Além da proposta esdrúxula (e inexequível) de dolarizar a economia argentina, não trouxe qualquer conteúdo minimamente ajuizado sobre como tratar os males do país.

O mau desempenho argentino tem efeitos negativos para o Brasil. Trata-se do quarto maior comprador de nossos produtos (cerca de 5% das nossas exportações; 11% na virada do século) e terceiro maior no que respeita às exportações da indústria de transformação (8% hoje, contra 12% há dez anos).

Sua instabilidade ainda contamina o Mercosul, arranjo que há muito se tornou disfuncional e que impede, às vezes como mera desculpa, a busca de integração mais profunda com fluxos internacionais de comércio, em particular com a União Europeia.

Infelizmente, a esta altura do campeonato, a principal, senão única, utilidade para a Argentina é servir de espelho sombrio acerca do que pode ocorrer por aqui caso os autodenominados “desenvolvimentistas” sigam dando as cartas na política econômica no Brasil, primeiro minando a responsabilidade fiscal, para depois fazerem o mesmo com a responsabilidade monetária.

Muito pouco, convenhamos, para um país que um dia correu o risco de ficar rico.

Link da publicação: https://veja.abril.com.br/coluna/alexandre-schwartsman/nosso-espelho-sombrio/

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Alexandre Schwartsman