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Deu no Financial Times

Folha

Em uma reportagem no Financial Times, um dos jornais mais lidos em Wall Street e na City de Londres, apareceu um gráfico em que o gasto do Estado brasileiro com juros e amortização da dívida pública era de mais de 50% da despesa total. Segundo o mesmo gráfico, o gasto com pagamentos de aposentadorias era 1/3 do gasto com juros e amortização.

O diário britânico de negócios e finanças comete erro comum aqui no Brasil: considerar que amortização de dívida seja gasto público.

Suponha que você irá alugar um apartamento para morar. Ao assinar o contrato de aluguel, você auferiu uma renda equivalente ao valor do apartamento? E, quando o contrato vence e o apartamento volta ao proprietário, você gastou o valor do apartamento?

Considerar amortização de dívida como gasto público é equivalente a considerar que a transferência de um apartamento em uma operação de aluguel envolve uma renda e uma despesa, respectivamente no início e no fim do contrato, no valor do imóvel.

A despesa de capital corretamente medida do ponto de vista econômico e contábil é dada pelos juros reais pagos. Para uma dívida líquida de 60% do PIB (Produto Interno Bruto) e juros reais na casa de 6% ao ano, bem elevados, os juros pagos são da ordem de 3,6% do PIB, uns R$ 360 bilhões. É muito —o Brasil é uma sociedade que poupa pouco e, portanto, os juros reais são elevados—, mas um sétimo dos R$ 2,5 trilhões do gráfico do Financial Times.

A confusão ocorre com muita frequência pois o “Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público do Tesouro”, em sua primeira parte, intitulada de “Procedimentos Contábeis Orçamentários”, estabelece os conceitos de receita e despesa por critério de caixa: tudo que entra é receita e tudo que sai é despesa.

Assim, se o Tesouro emite títulos de dívida e capta recursos no mercado, esse dinheiro entra no caixa do Tesouro na forma de uma receita de capital. No vencimento do título, quando o Tesouro amortiza a dívida, isto é, recompra o título de dívida, há uma saída de recursos na forma de despesa de capital.

A dessintonia entre o conceito de receita e despesa da parte 1 do manual e o sentido que economistas, contadores e cidadãos dão a essas mesmas palavras é esclarecida na segunda parte, chamada de “Procedimentos Contábeis Patrimoniais”.

Nas páginas 121 e 122, lê-se: “Para fins deste manual, a receita sob o enfoque patrimonial será denominada de variação patrimonial aumentativa (VPA), e a despesa, sob o enfoque patrimonial, será denominada de variação patrimonial diminutiva (VPD). Ambas não devem ser confundidas com a receita e a despesa orçamentária, que são abordadas na parte 1 deste manual”.

O que o senso comum, os economistas e os contadores entendem por receita e despesa é, na linguagem da contabilidade do setor público brasileiro, chamado de variação patrimonial aumentativa e de variação patrimonial diminutiva.

Ocupo este espaço há 11 anos. O tema mais recorrente por aqui é nosso conflito distributivo ou nosso contrato social, em crise desde 2013. Quem paga os impostos e quais programas e políticas públicas serão priorizados. É reconfortante acreditar que há um vilão culpado por nossos problemas. Por aqui, a dívida pública é vista como o grande vilão. Na Argentina, é o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Superestimar o gasto com juros é uma maneira simples e errada de achar que a solução de nossos problemas é relativamente simples se enfrentarmos o nosso vilão.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2023/12/deu-no-financial-times.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa