Globo
Órgãos públicos de proteção do patrimônio histórico e arquitetônico são necessários e existem nos âmbitos federal, estadual e municipal. É deles a competência administrativa de tombar imóveis especiais para preservá-los, algo relevante para a memória cultural. Só que, nos últimos anos, sua atuação vem causando preocupações, principalmente em grandes cidades.
São cinco questões. A primeira é que a mera instauração de um processo administrativo, feita com instrução ainda básica, congela o imóvel e a área que o envolve, até uma decisão final que pode tardar anos. Tem sido cada vez mais frequente que, pensando em seus próprios interesses, locatários ou vizinhos de imóveis postos à venda para posterior edificação corram a denunciar a iminente destruição de um bem que entendem valioso. Pressionado, o órgão instaura um processo administrativo de tombamento que depois fica mais ou menos parado, sem incentivos para acabar. É estranho decisões assim precárias e provisórias congelarem indefinidamente a destinação de imóveis.
Segunda questão: os tombamentos, que inicialmente serviam para proteger imóveis históricos, hoje, na prática, vêm também apoiando empreendedores e suas atividades. Exemplo foi um tombamento para dificultar a retomada, pelo proprietário, de prédio que vinha servindo a uma exibidora cinematográfica conhecida, e que em si não era um bem especial. Providência parecida atendera um famoso empreendedor teatral. A discussão, aqui, é sobre possível desvio de finalidade na preservação, imposta não exatamente pelo valor dos imóveis, que são ordinários, mas pelo possível valor dos usos específicos que neles ocorram. Tombamentos de uso são corretos?
Isso leva à terceira discussão: que tipo de bem cultural pode justificar uma medida tão restritiva? Barzinhos ameaçados de despejo querem o tombamento argumentando que a memória afetiva dos frequentadores seria um valor cultural. Moradores de casas em vilas, para bloquear edificações grandes autorizadas pela lei urbanística, veem valor cultural em seu modo específico de viver. Como, na atualidade, a ideia de patrimônio cultural tende à universalidade, quais são, afinal, ao menos quanto aos imóveis, os valores passíveis de proteção por tombamento? Eles devem ser escolhidos de modo discricionário pelos órgãos administrativos?
A quarta questão é a do tombamento em massa. Na cidade de São Paulo, bairros-jardim apenas de casas tiveram suas regras urbanísticas congeladas por medidas do tipo para impedir que a Câmara municipal viesse a autorizar novos usos e edificações, por meio de leis urbanísticas. Bem recentemente, a chegada do metrô ao bairro de Pinheiros gerou um boom de lançamentos imobiliários que incomodou moradores tradicionais, que se mobilizaram. O órgão municipal então decretou um tombamento provisório envolvendo nada menos que 600 imóveis. Travou a mudança da região, deixando subaproveitada a nova alternativa de transporte. Não deveria ser do legislador municipal a definição, em caráter geral, dos padrões urbanísticos da cidade? É normal que tombamentos massivos suprimam parte significativa da competência legislativa urbanística das Câmaras Municipais?
A quinta questão é que, com tombamentos em massa inviabilizando edificações, outras regiões serão oneradas com o adensamento que mudará de lugar e novos investimentos públicos terão de ser direcionados para elas – sem contar que seus moradores antigos terão alterado seu modo tradicional de viver. A pergunta, aqui, é se é legítimo as ações dos órgãos de proteção do patrimônio terem esse tipo de impacto distributivo, além de afetarem de modo tão forte a capacidade de se fazer ou executar um planejamento urbano global.
Tantas questões importantes sem resposta mostram uma falha sistêmica nessa matéria no Brasil. O regime jurídico do tombamento é hoje uma nau meio sem rumo.
Como se pode imaginar, tais movimentos têm provocado intensa judicialização. E, claro, as várias respostas judiciais aos conflitos tendem a ser casuísticas e pouco coerentes. A Câmara de Vereadores de São Paulo também reagiu há pouco, com um projeto de lei para limitar no tempo a vigência de tombamentos provisórios e defender sua competência para a ordenação urbanística geral da cidade. A simples aprovação do projeto gerou mobilização e judicialização, até porque o crescimento dos órgãos de proteção ao longo do tempo tem sido propiciado pela baixa credibilidade dos legisladores municipais — suspeitos, com ou sem razão, de representarem interesses ilegítimos.
Chegou a hora, portanto, de o Congresso Nacional agir.
O instituto do tombamento surgiu no Brasil há quase 90 anos, em um texto com força legal até hoje não atualizado (decreto-lei federal 25, de 1937). A Constituição de 1988 se referiu apenas brevemente a ele, como instrumento para o poder público “proteger o patrimônio cultural” (art. 216, § 1º). Temos então de construir uma lei nacional capaz de arbitrar com equilíbrio, e também clareza, os principais conflitos contemporâneos envolvendo o velho instituto.
É urgente definir até onde vão, de um lado, a reserva de administração pública em favor dos órgãos de proteção do patrimônio e, de outro, a reserva de lei urbanística em favor das Câmaras municipais. Necessário também regular os prazos dos processos administrativos de tombamento, que não podem ficar soltos. E, embora não seja fácil, parece indispensável calibrar a incidência dessa medida interventiva sobre imóveis, seja para evitar seu uso desviado em lugar de modos menos interventivos de apoio a valores culturais, seja para impedir medidas em massa para atender a militâncias dos bairros de elite.
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