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“Os ricos e os pobres”, de Marcelo Medeiros: uma resenha

FGV IBRE

Livro “Os ricos e os pobres”, de Marcelo Medeiros, acerta ao propor metodologia mais realista para dividir classes sociais no Brasil. Mas argumento de que educação tem baixo poder de reduzir pobreza e desigualdade tem falhas.

O pesquisador brasileiro Marcelo Medeiros acaba de publicar, pela Companhia das Letras, o livro “Os ricos e os pobres” [1]. Nele, Marcelo apresenta a sua leitura da desigualdade de renda no Brasil. O livro é escrito em linguagem acessível e fluente. Organizado em 24 capítulos curtos, distribuídos em três partes – Desigual, Os ricos e Os pobres –, em menos de 200 páginas Marcelo consegue descrever o tema. Marcelo respeita o tempo do leitor.

Para mim o livro tem um grande mérito, mais do que suficiente para mobilizar o interesse e justificar o tempo de leitura, e tem três deficiências. Tratemos primeiro do mérito.

Há algumas décadas persiste um desentendimento surdo entre os economistas e os sociólogos. Estes enxergam as classes sociais como organizadas em torno de valores e hábitos diferentes e não gostam das classificações de renda dos economistas. Marcelo, formado em economia, mas com doutorado em sociologia, consegue fazer a ponte entre esses dois mundos.

Os economistas olham a desigualdade pela classificação da população em faixas de renda, dividindo-a em parcelas populacionais iguais. Assim, é possível dividir em cinco partes e, portanto, teremos cinco quintos da população, ou em décimos ou em centésimos. Em seguida, olha-se dentro de cada classe. Isto é, considera-se que cada classe representa grupos relativamente homogêneos.

Essa forma de enxergar a desigualdade gera o resultado que incomoda os sociólogos: uma classe média com renda relativamente baixa. A renda domiciliar per capita média da PNAD é de R$1.623 e a renda mediana é de R$980. Trata-se de uma classe média bem pobre.

Marcelo inicia notando que a desigualdade brasileira está concentrada no topo. Isto é, se desconsiderarmos os 10% mais ricos, a desigualdade brasileira é bem baixa. Como aponta Marcelo: “A renda de uma pessoa nos 90% gira em torno de R$50 mil por ano. Isso equivale a um salário aproximado de R$3800 mensais de um trabalhador formal, que recebe décimo-terceiro e adicional por férias, e não é muito mais que o dobro da renda de uma pessoa nos 66%. Embora já seja quatro vezes mais que a renda de uma pessoa nos 33%, ainda não é muito. Portanto, até os 90% a homogeneidade é razoável, sobretudo porque os primeiros 20% são de adultos sem renda. Se o Brasil parasse aí, seria um país aceitavelmente igualitário”.[2]

De fato, o coeficiente de desigualdade de Gini de todas as rendas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNADC, é de 57. Quando consideramos somente os 90% mais pobres, a desigualdade cai para 41, uma redução expressiva de 15 pontos, para o nível aproximado da desigualdade americana.

Para encontrar uma maneira formal de construir faixas de renda com maior homogeneidade, Marcelo propõe a seguinte mudança de ponto de vista: em vez de dividirmos a população em grupos populacionais com o mesmo número de pessoas, dividir por grupos em que o crescimento percentual da renda entre eles seja o mesmo.

Um exemplo: considere como o piso de renda o limite da pobreza extrema, isto é, a renda de US$2,15 por dia por pessoa ou de R$322 por mês ao câmbio de R$5 por dólar americano. Como teto da renda, considere R$800.000 por mês. Segundo os dados da Receita Federal, este último valor é aproximadamente a renda de entrada dos contribuintes que estão na faixa do 0,01% mais rico,[3] grupo que corresponde a 15 mil contribuintes e aproximadamente 30 mil pessoas. Sob a hipótese de que cada declarante daquele teto de renda pertence a um domicílio com duas pessoas, temos uma renda mensal per capita de R$400 mil. Se dividirmos o ganho de renda entre o piso e o teto em cinco faixas, a taxa de crescimento geométrico entre cada faixa é de aproximadamente 316%. Segundo essa divisão teríamos cinco faixas de renda mensal per capita, como na tabela abaixo[4]:

Há arbitrariedade na definição do piso de renda e do teto de renda per capita – respectivamente R$322 e R$400 mil – adotados para estabelecer o crescimento geométrico entre as faixas de 316%. Independente das limitações inerentes às escolhas que geraram a tabela, as faixas de renda consideradas são mais homogêneas. Temos os muito pobres, os pobres, a classe média, os ricos e os muito ricos. Essa classificação corresponde melhor à ideia que os sociólogos têm de classes sociais. Importante frisar que o número de pessoas em cada faixa de renda não é o mesmo: reduz-se muito conforme se sobe nas classes de renda. E essa é a maior diferença entre a forma de olhar o tema dos economistas e dos sociólogos. Confesso que Marcelo me convenceu que esta é uma maneira melhor de organizar os dados. Há mais homogeneidade entre as classes de renda do que se a população fosse dividida em cinco classes com a mesma população em cada uma.

Outra diferença importante tratada por Marcelo é a diferença da fonte da renda. Até os 90% mais pobres, a maior parte da renda é do trabalho. A partir daí, conforme subimos na distribuição de renda, o peso da renda do capital, que inclui aluguéis e distribuição de dividendos, se eleva. “Já no 1% mais rico, o trabalho puro não chega a responder por metade do total”.[5] Assim, a agenda de tributação no topo da distribuição de renda demanda um desenho melhor da tributação na pessoa jurídica em seus diversos regimes tributários e da renda do capital em geral.

Agora, passo às minhas críticas. Um dos argumentos mais importantes do livro é que a educação tem baixa capacidade de reduzir a pobreza e a desigualdade. A educação é um investimento a longo prazo. Baseando-se num texto de 2020 do autor com colegas,[6] Marcelo apresenta o resultado de exercícios contrafactuais do impacto de uma grande expansão da escolaridade da população sobre a pobreza e a desigualdade. A partir dos ganhos de salários estimados com dados de mercado de trabalho brasileiro, o estudo reconstrói a distribuição de renda e a taxa de pobreza considerando uma população com maior escolaridade. Documenta que os ganhos expressivos de salários ocorrem em profissões prestigiosas do ensino superior – advogados, médicos e engenheiros –, o que torna a estratégia de atacar a desigualdade e pobreza por meio da maior escolarização da população muito lenta e tímida. Mesmo no longo prazo os números pouco mudam.

A estratégia educacional pode ser ainda mais difícil pois a escolarização das massas pode gerar queda de retorno da educação se a economia não crescer e não absorver a força de trabalho. “Para que a economia pague melhores salários, a economia precisa crescer”.[7]

Há duas teorias sobre o impacto da educação nos salários. A teoria do capital humano e a da sinalização. A teoria do capital humano estabelece que um trabalhador mais escolarizado é intrinsecamente mais produtivo. A teoria da sinalização estabelece que a produtividade é um atributo do trabalhador, independente da escolarização. O trabalhador já nasce mais habilidoso. A educação somente sinaliza ao empregador essa característica. Nesse caso a educação tem efeito importante para a pessoa, sinaliza a sua qualidade, mas tem efeito nulo para a produtividade agregada (o trabalhador já era mais produtivo, o empregador que não sabia e usou o diploma para inferir a maior produtividade).

Outra teoria, popular entre os sociólogos, é considerar que a produtividade não é um atributo do trabalhador, mas sim do posto de trabalho. Há postos de trabalho melhores e há os piores. Qualquer trabalhador serve para a posição (com exceção de atividades que exigem grande treinamento, como medicina, em que a teoria do capital humano se aplicaria). O mercado de trabalho emprega algum mecanismo para alocar os trabalhadores, que pode as ser conexões das pessoas ou das famílias. Diplomas podem servir como um fator de discriminação e de alocação. E, nesse caso, se todos conseguem diploma seu valor cai.

O exercício contrafactual do texto de Marcelo com os colegas supõe que os ganhos associados de salário em função da maior escolarização devem-se a uma combinação das duas teorias tratadas nos últimos dois parágrafos acima, e não a um ganho de produtividade intrínseco da pessoa mais escolarizada, como estabelecido pela teoria do capital humano. Se os ganhos de salários representassem um ganho de produtividade real e intrínseco ao trabalhador, o exercício contrafactual teria que considerar que o aumento da educação elevaria o retorno do capital físico, isto é, que a rentabilidade do investimento elevar-se-ia. Mas Marcelo e colaboradores consideram somente o efeito direto sobre a renda da pessoa mais escolarizada. Também não há, no exercício de Marcelo e colaboradores, uma relação clara entre aumento da escolaridade e PIB per capita.

A evidência consolidada indica que a maior parcela dos ganhos de salários, 85%,[8] é associada a ganhos de produtividade do trabalhador.[9],[10] Artigo de revisão recente conclui que: “No geral, a melhor evidência sugere que o capital humano é responsável por pelo menos um terço da variação dos rendimentos do trabalho dentro dos países, e por pelo menos metade da variação dos rendimentos por trabalhador entre os países”.[11] De fato, paper recente ainda não publicado de Amory Gethin documenta que a melhora educacional responde por 50% do crescimento econômico da economia mundial e por 40% da redução da pobreza extrema no mundo entre 1980 e 2022.[12]

A maneira de conciliar os resultados dos exercícios contrafactuais de Marcelo Medeiros e colaboradores com a evidência da literatura de educação e crescimento econômico é que o processo de escolarização da população brasileira não tem tido qualidade. Isto é, os alunos frequentam a escola, mas não aprendem ou aprendem muito pouco. De fato, há evidências de que o valor adicionado (na forma de aprendizado) pela escola no Brasil, medido por desempenho dos alunos em testes independentes de proficiência, é muito baixo. Tão baixo que o Brasil foi um caso raro em que não houve piora do desempenho logo após a pandemia. Tudo sugere que não houve piora pois não há o que piorar, dada a falta de aprendizado que já ocorre.[13]

Os exercícios contrafactuais empregados por Marcelo em seu livro consideram que não é possível melhorar a qualidade de nossa educação. A hipótese pode fazer sentido. Temos perdido essa batalha. Mas perder essa batalha, à luz de tudo que sabemos hoje da ligação de crescimento econômico e educação, é aceitarmos que economicamente não progrediremos. É essa a hipótese subjacente aos exercícios de Marcelo.

A segunda crítica que tenho ao livro é haver uma falta de simetria. O livro tem uma premissa: “somente combater a desigualdade e pobreza com educação não funcionará”. Marcelo propõe uma segunda política: tributar os ricos e redistribuir. Por exemplo, retomar políticas mais agressivas de elevação do salário mínimo e financiar o impacto fiscal desses aumentos por meio de maiores impostos sobre os ricos. Não há nenhum problema da coluna com essa estratégia. Em novembro de 2015, neste espaço, defendemos a necessidade de maior justiça tributária.[14] A falta de simetria é que Marcelo não apresenta exercícios contrafactuais com o emprego dessa estratégia. Qual é a capacidade da política tributária e do gasto público de alterar a desigualdade e a pobreza?

Exercício em estudo recente documenta que “uma agenda bem desenhada de resgate da progressividade da tributação de renda tem potencial de levantar receitas de até 1,8% do PIB”.[15] Para tal “levaríamos as alíquotas de imposto de renda da pessoa jurídica e física para a média observada nos países da OCDE”, segundo o estudo.[16] Qual o ganho de redução de pobreza e desigualdade possível com 2% do PIB financiado por meio de impostos mais progressivos? Lembremos que, nos últimos anos, adicionamos 1,2% do PIB, aproximadamente, ao programa Bolsa Família e temos hoje um déficit primário na casa de 1% do PIB ou um pouco mais. Qual foi o ganho, em termos de redução da pobreza e desigualdade, ocorrido com a forte expansão do gasto com o programa Bolsa Família?

A terceira crítica ao livro de Marcelo é não tocar no patrimonialismo. É possível discutir desigualdade no Brasil sem abordar o patrimonialismo? Por exemplo, à página 107 lê-se: “Metade de todo o patrimônio declarado estava nas declarações de 0,5% dos adultos. Eram pessoas com riqueza superior a R$1,5 milhão em valores de maio de 2021. O pouco que sabemos sobre o final da década de 1990 reforça essa ideia, pois sugere que o 1% dos adultos detinha mais de metade do patrimônio total declarado”. Uma conta simples mostra que um servidor público aposentado com uma renda mensal, líquida de imposto de renda, de R$30 mil reais por 30 anos (expectativa de vida aos 65 anos de 20 anos e pensão por morte de 10 anos) tem o equivalente a um patrimônio (não contabilizado) de R$6,6 milhões. Empreguei nessas contas juro real de 5,5% ao ano, inflação de 5% e imposto de renda sobre o juro nominal de 10%. Nas últimas décadas o Estado brasileiro, sempre com a anuência do Congresso Nacional, outorgou benefícios a indivíduos que chegam muitas vezes a quase uma dezena de milhão de reais.[17]

Em que pese as minhas três críticas, o livro de Marcelo é obrigatório para quem sem preocupa em entender a sociedade brasileira.

Esta é a coluna Ponto de Vista da Conjuntura Econômica de fevereiro de 2024.

Link da publicação: https://blogdoibre.fgv.br/posts/os-ricos-e-os-pobres-de-marcelo-medeiros-uma-resenha

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Samuel Pessôa