Lei sobre vínculos com fundações civis de saúde reflete identificação e consolidação jurídica de modelos que entregaram resultados consistentes ao longo do tempo e se legitimaram
Globo
Pesquisas têm demonstrado sérios problemas com nosso direito da gestão administrativa, afetando os serviços públicos e seus usuários.
Um deles é o raquitismo legal. Nossa legislação geral sobre organização administrativa está velha e, em princípio, impede as necessárias variação e adaptação dos modos de gestão.
Depois, a inefetividade jurídica. Os gestores, em um movimento de quase quatro décadas, têm inovado muito — mas sem apoio em legislação, assumindo muitos riscos jurídicos. Paradoxalmente, eles obtêm bons resultados, ampliam direitos sociais, modernizam políticas públicas, aumentam a eficiência. Com isso, obtêm reconhecimento da população e solidariedade do mundo político.
Porém, há um custo jurídico crescente, em dois sentidos.
Primeiro: defender tais inovações perante controladorias, consultorias públicas e órgãos de controle, hoje bem aparelhados e atuantes, exige enorme energia das administrações públicas — e elas, apenas para evitar retrocesso nos resultados, empregam nisso cada vez mais recursos finalísticos.
Segundo: os controles públicos, que ficaram presos por um direito da gestão administrativa muito anacrônico, passaram a ser vistos como sabotadores dos avanços. Arriscam desmoralizar-se perante a opinião pública, justa ou injustamente, e acabam hostilizados pelo mundo político.
Em suma, nosso direito da gestão administrativa virou um inimigo geral: dos gestores, da população, do mundo político e mesmo das perspectivas futuras dos controles públicos.
São Paulo acaba de dar um passo importante para mudar isso. E, significativamente, o fez nos campos da saúde pública e das universidades públicas.
A lei 17.893, de 2 de abril de 2024, legitimou os vínculos da administração estadual com as fundações civis de saúde instituídas pelas comunidades científicas de suas universidades. São entidades não integrantes da máquina pública, que cumprem missões públicas relevantes e difíceis.
São Paulo adotou um novo formato de reforma da gestão administrativa: a identificação e consolidação jurídica de modelos que, embora não formais, entregaram resultados consistentes ao longo do tempo e se legitimaram. Os leitores desta coluna já conhecem a concepção jurídica que levou a esta reforma, que antecipei em artigo anterior.
A nova lei paulista não só declarou que os vínculos com as fundações civis de saúde são valiosos, com as características que assumiram por força da experiência. Reconheceu que são indispensáveis: sem eles, não é viável ao Estado, por exemplo, atender a alta complexidade, com a urgência e a qualidade que ela requer. A partir daí, a lei se valeu de pressupostos e soluções jurídicas originais para a transparência e controle.
Uma das entidades envolvidas é a Fundação Faculdade de Medicina da USP, com alta reputação e transparência, responsável por viabilizar, integrar e contribuir para iniciativas das áreas hospitalar, acadêmica, de pesquisa e de assistência social dessa faculdade e do Complexo de seu Hospital das Clínicas, o mais importante do país. Seu exemplo e liderança foram fundamentais em todo o processo. Há outras fundações do tipo no Estado de São Paulo, também nascidas e conduzidas pelas comunidades científicas das universidades públicas.
O diagnóstico jurídico, os conceitos e as propostas originais incorporadas na lei vieram do Grupo Público da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), em trabalho que coordenei, em interlocução com as comunidades científicas, os gestores das várias universidades e hospitais, e, muito importante, os controladores e consultores públicos.
A presidente da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, deputada Bruna Furlan, assumiu a liderança política da reforma e viabilizou um projeto parlamentar coletivo, aprovado em seguida por (raro) consenso entre a situação e a oposição parlamentar. O Poder Executivo apoiou e sancionou a lei sem vetos.
Essa convergência entre acadêmicos da saúde e do direito administrativo, bem como entre forças políticas opostas, gestores e controladores mostra duas coisas com bastante clareza: a hora de uma nova reforma da gestão administrativa já chegou e o formato adequado para iniciá-la é identificar e consolidar experiências juridicamente informais com resultados concretos já comprovados.
Esse formato será valioso para preservar e melhorar outras experiências bem sucedidas de gestão administrativa: regimes de trabalho não permanentes para o serviço público, concursos públicos por competências e habilidades, fundações estatais de direito privado e tantas outras. Está aberto um novo caminho, no qual os demais entes da Federação podem se inspirar.
Link da publicação: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2024/04/carlos-ari-sundfeld-sao-paulo-adota-novo-formato-de-reforma-da-gestao-administrativa.ghtml
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