Aniversário do plano econômico que derrubou a inflação é oportunidade de revisitar transformações legislativas que regem a gestão administrativa
Globo
A comemoração do aniversário redondo do Plano Real, que derrubou a inflação e iniciou um novo ciclo econômico e social no Brasil, é uma oportunidade para pensar também na era em que ele surgiu e em seus impactos diretos e indiretos no direito administrativo.
O período de 1995, com a posse de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, a 2007, nos primeiros anos de Lula, não foi só de luta contra a inflação e o déficit público. Foi também de administrações públicas em reforma.
Houve amplas mudanças constitucionais, inclusive para reorganizar a atuação do Estado na economia, a gestão administrativa do Judiciário, a previdência social e os regimes e as remunerações dos servidores públicos; com muitos processos de privatização e de abertura à concorrência em setores antes monopolizados por ação estatal; com normas, ajustes e atos impulsionando a participação popular e do Terceiro Setor em temas administrativos, bem como avanços nos serviços e nos programas sociais. A Constituição inflou: foram 52 emendas constitucionais em 13 anos, algumas bem extensas, como a nº 19, da reforma administrativa, com mais de cinco mil palavras. E a legislação administrativa de caráter geral explodiu.
No período, o poder público incrementou o esforço de regulação, criando agências reguladoras com alguma autonomia, e de contratação de novos empreendimentos e serviços com particulares, iniciativas que dependeram de formas jurídicas sofisticadas para organizar uma atuação estatal bem diversificada. Para isso o direito administrativo foi se renovando e ampliando; e ficou mais complexo.
Nos anos 1990, enquanto economistas envolvidos em reformas sofriam entre meandros jurídicos — inicialmente debelando a inflação, depois reconstruindo o Estado —, por seu lado, os juristas especializados em questões públicas aprendiam sobre termos, orientações e condicionantes econômicos e tentavam trabalhar na construção das novas instituições. Foi assim que a expressão direito administrativo econômico seria assumida como síntese de um campo que se expandia.
Nesse período de passagem entre os anos 1990 e 2000, os administrativistas brasileiros mais jovens começaram a repensar tradições ao ficarem expostos a perspectivas muito diferentes das suas, como a abertura à interdisciplinariedade, caso do professor da Uerj André Cyrino, que utilizou a teoria das escolhas públicas para propor uma visão de “carne e osso” sobre legalidade e a análise econômica do direito como instrumento para aplicar a sério o princípio da eficiência administrativa. Isso geraria naturais estranhamentos e inspirações.
Só que uma transformação ainda mais larga vinha ocorrendo aos poucos. A arena jurídico-administrativa vinha passando por enorme expansão: a sociedade inteira, e não apenas o mundo econômico, se aproximara do campo estatal. Isso mudaria o direito administrativo para sempre.
O ambiente do direito administrativo do país no início do século XX havia sido de administrações públicas ínfimas e com escassas promessas e prestações. Leis administrativas e regulamentos olhavam poucas questões, de poucas áreas. Os controles públicos eram embrionários, e as intervenções, pontuais. A arena jurídico-administrativa era restrita, com um círculo mínimo de gente transitando por ali; a maioria dos empreendedores, trabalhadores e marginalizados nascia e morria ao largo, sem jamais ver pela frente um advogado da área. Mas, na passagem entre os séculos XX e XXI, tudo estava mudado. A arena jurídico-administrativa explodira.
Foi aí que a constitucionalização e a principiologia viraram a febre dos administrativistas e tomaram os processos estatais de todos os tipos. Amplas reformas e choques de interesse estavam dividindo a sociedade brasileira no final do século XX e, claro, também os administrativistas — alguns simpatizando ou aceitando, outros reagindo com argumentos constitucionais, em geral principiológicos.
Foram frequentes as idas à Justiça com esse tipo de alegação, em tentativas de adiar, impedir ou derrubar reformas (privatizações, por exemplo), algumas vezes com êxito. Invocava-se a ideia de Constituição Cidadã para criticar as reformas constitucionais iniciadas em 1995 como supostos ataques neoliberais à cidadania.
As leis perdiam prestígio no ambiente jurídico em favor de soluções inventadas por professores, advogados, promotores e juízes com a invocação convencional e algo frouxa de princípios constitucionais — muitas vezes princípios “implícitos” ou vagos. É como se os juristas e tribunais, sentindo-se legitimados pela sobrevivência post-mortem do sentimento constituinte, assumissem a função de constituintes fantasmas para lidar com casos concretos.
Então, desde o final dos anos 1990, o mundo jurídico, à moda dos quartéis militares do passado, passou a julgar-se fiador da estabilidade e motor do desenvolvimento. Sentimento que persistirá, sem que os políticos, seguidamente desmoralizados em escândalos e divisões, consigam se legitimar por inteiro no papel.
Avaliando em 2008 o impacto da Carta de 1988 nesse campo, Luís Roberto Barroso falou de uma sensação que iria “do espanto ao fastio” por conta do número de princípios e regras, e relatado a tendência, até então, de se reconhecer à Constituição “uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios”, levando a um fenômeno de “filtragem constitucional”, de “reinterpretação” de todo o Direito positivo “sob uma ótica constitucional”.
Porém, sua conclusão à época parecia bem cautelosa. Primeiro, alertando contra a “constitucionalização exacerbada” e suas “consequências negativas”, entre as quais o “engessamento da legislação ordinária” e “o decisionismo judicial”. Segundo, acenando com dois parâmetros interpretativos para combater a exacerbação constitucional: a “preferência pela lei” e a “preferência pela regra”.
Só que, anos depois, já ministro do Supremo Tribunal Federal, ele viria a nuançar bastante a cautela, sustentando que as cortes constitucionais constituiriam uma “vanguarda iluminista, encarregada de empurrar a história quando ela emperra”.
Talvez Barroso tenha apenas expressado as tendências dos juristas de seu tempo. Nas últimas cinco décadas, os desafios públicos haviam se somado rapidamente e deixado marcas jurídicas profundas no direito administrativo. São juristas que se iniciaram no campo público justamente no período fervilhante que precedeu e propiciou a redemocratização, depois se engajaram em fazer valer a Constituição, para logo sentirem receio quanto aos riscos da judicialização excessiva — em especial a que tentava combater as reformas que, seja por imposição das crises fiscal e monetária, seja pela busca de eficiência na prestação dos serviços públicos e sociais, iam sendo decididas pelos Poderes democráticos.
Foi uma geração que ainda teria de se enredar com a profunda crise do Estado tomado pela corrupção, sofreria com a ascensão dos radicalismos e ameaças à democracia, e que segue hoje seu caminho zonzo, tateando entre o passado e o desconhecido, na busca pragmática de um modelo de direito administrativo que talvez funcione.
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