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Turbulentos 12 meses à frente

Estadão

As questões sobre julgamentos, delitos, penas, impunidades e anistias, ora dominando amplo espaço no debate público no Brasil, foram tratadas por um pequeno e grande clássico por Cesare Beccaria, publicado em 1764, que retém surpreendente atualidade. Diz o autor de Dos delitos e das penas: “Eu não encontro exceção alguma ao axioma geral de que todo cidadão deve saber quando é culpado ou inocente”. Porém, há simulações e dissimulações e há delitos para os quais sociedades organizadas preveem penalidades. “(…) A finalidade destas é apenas impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o mesmo.” Para que cada pena não seja uma violência contra um cidadão privado, esta “deve ser essencialmente pública, rápida, necessária, a mínima possível nas circunstâncias dadas, proporcional aos delitos e ditada pelas leis”. E, em observação crucial para os dias que correm entre nós: “Mostrar aos homens que os delitos podem ser perdoados e que a pena não é sua inevitável consequência é fomentar a ilusão da impunidade e fazer crer que as condenações não perdoadas, embora pudessem sê-lo, são antes abusos de força que emanações da justiça”.

Esses temas estarão presentes nos debates que se estenderão até pelo menos as eleições presidenciais de 2026. Afinal, todos os comentaristas e analistas políticos têm chamado a atenção para o fato de que é a primeira vez na História que uma tentativa de golpe será punida. Fernando Gabeira, em artigo recente (O Globo, 2/9), registrou: “Mas, também pela primeira vez, ela (a tentativa) nunca teve respaldo tão militante e articulado”, notando que “igualmente de forma inédita um presidente dos EUA se coloca claramente contra o júri e pede o fim do processo”. Gabeira nota que o tema da soberania pode animar a campanha de 2026, “no bom sentido”, porque pode inspirar um debate sobre programas de governo, sobre nossos interesses nacionais e lacunas no exercício de nossa soberania.

Interesse nacional, soberania e democracia foi o título de meu artigo publicado neste espaço em 11/11/2012. O texto, após apresentar de maneira sucinta lições para o Brasil da experiência da China, da Índia e da Rússia na definição de seus respectivos interesses, lança pergunta mais específica indo além dos países citados: regimes democráticos têm mais ou menos dificuldades para definir com clareza seus interesses nacionais?

Joseph S. Nye Jr., por muitos anos o decano dos estudos norte-americanos sobre poder (hard and soft) nas relações internacionais, escreveu: “Numa democracia, o interesse nacional é simplesmente aquilo que os cidadãos, após deliberação apropriada, afirmam que é (…) Lideranças políticas e especialistas podem apontar para os custos de indulgência em certos valores, mas, se um público informado discorda, os especialistas não podem negar a legitimidade dessas opiniões”.

É claro que o fundamental dessa visão é a expressão “após deliberação apropriada por parte de um público informado”. O que nem sempre ocorre, mesmo em várias democracias. E se, ainda após tais deliberações por um público informado, emerge um país profundamente dividido ou posições que não sejam muito mais que a expressão de desejos que não se traduzem em políticas avaliadas por seus resultados, e não por suas intenções originais?

Cabe a pergunta: o povo norte-americano, ao eleger Donald Trump, teria definido, ao mesmo tempo, onde residiriam os verdadeiros interesses nacionais do país? Ou decidido que Trump havia deixado isso absolutamente claro durante a campanha? Ou delegado a Trump o direito de decidir sobre tais interesses no ato de governar, como lhe parecesse mais apropriado?

A propósito, Elio Gaspari chamou a atenção, tempos atrás, para a importância de avaliar a consistência dos índices gerais de promessas presidenciais (IGPPr’s) em suas versões A (de índices ampliados pela inclusão de novas promessas) e suas versões E (de índices expurgados de promessas não cumpridas ou simplesmente esquecidas porque não eram mesmo destinadas a sobreviver ao curto espaço de uma campanha eleitoral). E, como sabemos ou já deveríamos ter aprendido, ganhar uma eleição é uma coisa, governar um país profundamente dividido é outra muito diferente. Particularmente, num regime de presidencialismo hiperminoritário num Congresso multipartidário, com partidos não programáticos e que adquiriram poderes extraordinários sobre questões orçamentárias, dos quais não pretendem abrir mão.

Em excelente artigo, publicado neste espaço na sexta-feira passada (As duas Américas), Simon Schwartzman fez duas observações com as quais concluo este artigo. A primeira: “É na maneira pela qual as sociedades se constituem e funcionam internamente, mais do que nas relações que mantêm com o exterior ou as doutrinas de alguns de seus políticos e intelectuais, que devem ser buscadas as explicações de seus sucessos e fracassos”. A segunda: “(…) o passado não é destino, e alguns países e regiões, mais do que outros, conseguiram se constituir em sociedades mais democráticas e capazes de gerir seu próprio destino”.

O Brasil pretende, legitimamente, ser percebido como estando neste grupo.

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/opiniao/pedro-s-malan/turbulentos-12-meses-a-frente/

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Sobre o autor

Pedro Malan