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Depois de nós, o dilúvio

Folha

As últimas semanas trouxeram claras evidências do desmantelamento da governança climática global, impulsionado principalmente pela atuação do novo governo americano.

A Net Zero Banking Alliance (NZBA) anunciou uma “pausa” em suas atividades para realizar uma consulta a seus membros quanto à conveniência de abrandar suas regras internas, passando a ter caráter apenas de orientação e não mais de direcionamento.

Com isso, a aliança criada em 2021 com o apoio da ONU, que chegou a reunir 140 dos maiores bancos do mundo com o propósito de alinhar as finanças globais à meta de emissões líquidas zero, capitula diante das pressões que já haviam levado importantes bancos americanos e europeus a se retirar.

Enquanto isso, nos EUA, um relatório encomendado pelo secretário de Energia a cinco cientistas divergentes do consenso climático é utilizado pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) como base para reverter a jurisprudência de 2009, que reconhece legalmente os riscos das emissões de gases de efeito estufa (GEE). Sem esse amparo, a agência fica impedida de regular, na prática, setores como transporte e indústria.

No Brasil, uma decisão monocrática do Cade suspendeu os efeitos da moratória da soja, em vigor desde 2006. O acordo proíbe a aquisição de soja produzida no bioma amazônico em terras desmatadas após 2008.

Tanto nos EUA como no Brasil, as medidas enfrentam contestação judicial. Nos EUA, grupos ambientais processaram o Departamento de Energia (DOE) e a EPA por flagrantes violações da lei que regula comitês consultivos. No Brasil, a Justiça Federal de Brasília concedeu liminar suspendendo a decisão do Cade. Pode-se antever uma disputa acirrada e possivelmente longa em ambos os casos.

O elemento comum aos três casos —NZBA, EPA e moratória da soja— é a incapacidade do Estado de prover base legal sólida para garantir o controle de emissões e do desmatamento.

Os bancos membros da NZBA criaram regras internas para reduzir gradualmente as emissões das empresas de suas carteiras de crédito, suprindo a falta de legislação clara e de um mercado regulado de carbono. Sem amparo legal, sucumbiram aos ataques de procuradores de estados republicanos que os acusaram de formação de cartel, já que haveria decisão coletiva e ilegal de negar crédito ao setor de óleo e gás, principalmente.

No caso da moratória da soja, a acusação também foi de cartelização. A iniciativa foi um acordo privado entre exportadores, nascido em 2006 sob pressão internacional, já que o Estado brasileiro não garantia fiscalização eficaz do desmatamento. Deveria ter se tornado desnecessária a partir de 2012, com o Código Florestal, que estabeleceu critérios claros para a ocupação do território.

Mas o Estado falhou na implementação: o CAR (Cadastro Ambiental Rural), condição essencial para a lei, nunca foi efetivamente implantado, e os PRAs (Programas de Regularização Ambiental) não avançaram. Assim, a moratória, que deveria ser temporária, tornou-se instrumento indispensável ao controle do desmatamento, mas sujeito a contestações como a atual.

Da mesma forma, falta uma lei específica do Congresso americano que atribua claramente poderes à EPA para regular emissões de GEE. Em não havendo, a agência se apoia no “Endangerment Finding”, ato administrativo respaldado por decisão da Suprema Corte, mas sujeito a reinterpretações judiciais.

Essa ausência de base legal não é fortuita: decorre da resistência dos legisladores a impor ônus imediatos a seus eleitores em troca de benefícios distantes no tempo. Deve-se também, e sobretudo, ao forte lobby do setor de combustíveis fósseis, como ficou patente nas últimas eleições americanas.

Há, porém, países como os membros da União Europeia, que lograram estabelecer base legal e normativa sólida para promover a redução de emissões. Nesse caso, a estratégia do setor de óleo e gás tem sido criticar duramente as políticas climáticas e seus impactos econômicos, além de usar o peso dos EUA nas negociações tarifárias para tentar isentar exportações americanas das exigências ambientais europeias.

O recente “Global Outlook Report” da Exxon Mobil, maior empresa privada do setor, é exemplar nesse sentido. Em uma seção intitulada “Lições da Europa” afirma que, em consequência das políticas de descarbonização, a produção industrial está em declínio: “Os preços de energia na indústria pesada e no transporte comercial estão subindo. Como resultado, o apoio público às tecnologias de baixa emissão, necessárias ao alcance das metas climáticas da UE, está enfraquecendo”.

Um diretor da empresa, citado pelo Financial Times, afirma: “Não quero que isso soe como se a transição energética não pudesse ou não devesse ocorrer. O que queremos dizer é que é preciso agir com inteligência nesse processo”. Onde se lê “inteligência”, entenda-se lentidão, muita lentidão.

Assim, enquanto a “linha dura” do setor persiste na política de negação e desinformação sobre as mudanças climáticas adotada nos últimos 30 anos, surge uma “ala pseudo-moderada” que admite os fatos, mas contesta a estratégia para enfrentá-los. Pregam que os custos de zerar emissões em 2050 —como prevê a União Europeia— seriam excessivos para a sociedade. Defendem um processo mais lento, sem especificar prazos, satisfeitos com qualquer política que postergue o ponto de inflexão nas vendas de petróleo por duas ou três décadas.

O que chamei no início de “desmantelamento da governança global climática” é justamente o mecanismo pelo qual se pretende garantir mais 20 ou 30 anos de crescimento das vendas —e dos bônus decorrentes— de petróleo. As empresas petroleiras se apropriam dos ganhos, enquanto os ônus são arcados por toda a humanidade, especialmente os mais vulneráveis e as gerações futuras. Os executivos do setor poderão então dizer, como a amante de Luis 15, mme de Pompadour: “Depois de nós, o dilúvio”.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/candido-bracher/2025/09/depois-de-nos-o-diluvio-o-desmonte-da-governanca-climatica.shtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Candido Bracher