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Ensino superior, meritocracia e discriminação

Crianças negras, mulheres e que cresceram em famílias vulneráveis ainda sofrem os impactos destes fatores pelo resto da vida

Valor

O ensino superior no Brasil passou por várias mudanças nas últimas décadas. Na década de 1970, somente 2% dos adultos tinham feito faculdade. Ao longo dos anos 1990, a desregulamentação do setor educacional privado aumentou muito as matrículas. Nos anos 2000, o Enem começou a ser usado para a concessão de bolsas de estudos no setor privado pelo programa Prouni e depois para o ingresso no ensino superior através do Sisu. Finalmente, nos anos 2010, a criação do sistema de cotas democratizou o acesso. Como estas mudanças afetaram o mercado de trabalho? Será que as riqueza familiar e a discriminação perderam importância na determinação dos salários?

Hoje em dia, existem dados detalhados de toda a trajetória escolar e no mercado de trabalho para praticamente todos os brasileiros. Os dados individuais são protegidos pelo sigilo, e só podem ser acessados dentro de salas protegidas do Ministério da Educação. Mas já é possível analisar as trajetórias dos alunos formados no ensino superior agregados por curso e por faculdade. Isto foi feito pela primeira vez por Javier Feinmann e Roberto Rocha, que disponibilizaram estas informações em (https://javierfeinmann.github. io/ JavierFeinmann/index.html)*.

Claro que seguir turmas de alunos formados não é tão bom como seguir cada aluno individualmente, pois temos que deixar de lado diferenças importantes entre os alunos de uma mesma turma. Além disto, somente podemos acompanhar as turmas que tinham mais de 10 alunos formados, para manter a informações desidentificadas. Mas, mesmo assim, as informações disponíveis são muito interessantes. Especialmente, porque os autores disponibilizaram também informações sobre o desempenho médio dos alunos de cada turma no Enem, além da escolaridade e renda média dos pais destes alunos.

Além disto, podemos saber a parcela de mulheres e negros em cada turma, a porcentagem dos formados em cada curso que está trabalhando no setor formal da economia (os “CLT”), que abriu uma pessoa jurídica (PJ), quantos da turma abriram uma microempresa individual (MEI) e qual o salário médio por turma entre os que estão no setor formal da economia. Podemos saber, por exemplo, qual o salário médio em 2019 da turma que se formou em direito na UFRJ em 2015. Estas informações podem ser usadas pelos gestores das faculdades, pelo órgão regulador e pelos pais dos futuros alunos para comparar resultados dos egressos. O que mostram os dados?

A primeira informação relevante é que as turmas formadas por alunos que tiveram notas maiores no Enem também ganham salários maiores depois de formados, dentro de cada curso e tipo de universidade. Isso é esperado, pois estas notas refletem os investimentos da família desde a primeira-infância, além do acesso a melhores escolas e das habilidades cognitivas e socioemocionais dos alunos. Estas características tendem a ser bem remuneradas no mercado de trabalho e podem facilitar a entrada e o aprendizado nas melhores faculdades.

Mas é interessante notar que as turmas com maiores notas no Enem também tendem a ser mais empreendedoras, com maior porcentagem de alunos abrindo empresas, mesmo dentro de cada curso. Além disto, como esperado, a educação e a renda familiar média das mães dos alunos também aumentam muito o salário médio e a proporção de empreendedores, mesmo entre turmas que tiraram notas parecidas no Enem e fizeram cursos iguais em universidades parecidas.

Isto significa que o ambiente familiar desde os primeiros anos de vida continua afetar o sucesso dos filhos, para além do seu efeito sobre as notas no final do ensino médio, do curso escolhido e do tipo de faculdades que eles frequentam (pública, estadual, federal ou privada). Turmas com a mesma nota média no Enem, mas que cresceram em famílias mais ricas, podem ter tido mais condições de absorver conhecimento durante a faculdade ou de conhecer outras pessoas ricas que podem ajudá-las no mercado de trabalho ou nas tarefas escolares.

Outro ponto importante é que turmas com mais mulheres e negros tendem a ganhar menos quando entram no mercado de trabalho, mesmo dentro do mesmo curso, com a mesma nota média no Enem, a mesma escolaridade média dos pais e renda familiar. Além disto, estas turmas têm maior porcentagem de formandos que não são CLT, nem abriram empresas, ou seja, estão fora do setor formal da economia. Os alunos destas turmas têm maior probabilidade de serem MEI, de estarem desempregados ou fora da força de trabalho.

Interessante notar que estas relações variam bastante entre os cursos. Nos cursos de medicina, por exemplo, somente 43% dos formandos eram CLT em 2019, já que 42% tinham aberto uma PJ quatro anos após a formatura. Além disto 60% destes alunos tinham mães com ensino superior, 57% eram mulheres e 36% eram negros. Por outro lado, nos cursos de engenharia, 70% eram CLT, somente 5% eram PJ, 46% da turma era composta de mulheres, 38% eram negros e somente 32% das mães tinham ensino superior.

Mais importante, há cursos em que as turmas com muitas mulheres são mais penalizadas no mercado de trabalho, como administração de empresas e engenharia, enquanto existem outros em que estas turmas ganham um prêmio salarial, como direito, odontologia e biologia. Com relação aos negros, a relação negativa entre sua parcela na turma e os salários predomina na maioria dos cursos mais concorridos, com exceção dos formados em direito. O que será que explica estas diferenças tão grandes entre os cursos? Será elas refletem diferenças nos tipos de ocupação exercidas por homens e mulheres dentro de cada curso, ou a discriminação no mercado de trabalho, que pode estar refletindo diferenças culturais?

Em suma, a inserção e a renda dos jovens no mercado de trabalho dependem de vários fatores. Tudo começa no início da vida, com os investimentos dos pais e do Estado na primeira infância, que tem muita importância para toda a sua trajetória futura. Em seguida, a formação escolar no ensino fundamental e médio tem papel fundamental. Neste sentido, a escolaridade e renda dos pais é fundamental para determinar preferências e restrições.

Os dados mostram que estes fatores continuam afetando a vida dos filhos, para além do seu impacto nas notas no ensino médio, escolha do curso e da faculdade. Desta forma, as crianças negras, mulheres e que cresceram em famílias vulneráveis irão sofrer os impactos destes fatores pelo resto da vida, tendo que superar barreiras em todas as etapas.

* Os dados fazem parte do artigo “Social Mobility and Higher Education in Brazil” por Javier Feinmann e Roberto Hsu Rocha.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/naercio-menezes-filho/coluna/ensino-superior-meritocracia-e-discriminacao.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Naercio Menezes Filho