Não existe um valor preciso para que uma dívida pública entre numa trajetória explosiva, mas isso não significa que devemos baixar a guarda, diz o economista Persio Arida, em uma entrevista ao Blog do CDPP.
“O fato de a dívida ser em reais, não significa que o risco de default seja zero”, afirma Persio. “Defaults da dívida interna são mais raros do que os da dívida externa, mas acontecem.”
Persio, que é presidente do CDPP, enfatiza a importância de estabelecer um novo arcabouço institucional para as finanças públicas, com ajustes e reformas em diversas frentes.
“Parte do problema das contas públicas é que não se utilizam os critérios contábeis do mundo privado. No cálculo do déficit, alguns itens entram no regime de caixa, outros no regime de competência”, diz Persio. “O balanço do Governo deveria ser feito segundo critérios de competência. Usar os critérios da contabilidade privada ajudaria muito e facilitaria o entendimento do problema. Há muito para ser mudado na nossa legislação orçamentária.”
Persio defende também que os gastos correntes deveriam ficar constantes em termos reais. “Há evidências de descalabros”, afirma. “Nossa capacidade de revisar gastos, o chamado spending review, e determinar interrupção de programas ineficientes tem sido pífia.”
Sobre o Banco Central, o economista, que já foi presidente do BC, diz que a independência operacional é “um seguro contra o populismo em matéria monetária”. Persio, contudo, defende mudanças em dois aspectos institucionais da autoridade monetária. A primeira é cancelar as operações compromissadas e passar a ter depósitos remunerados no BC. A outra é facultar ao BC comprar dívida do Tesouro, para usar o balanço do BC como instrumento de estabilização de mercados em momentos de stress. “Aqui não há nada de novo, trata-se apenas de alinhar o nosso enquadramento institucional ao que já se faz em economias desenvolvidas.”
Tratando da taxa de juros, o economista acredita que já há espaço para o BC cortar a Selic: “Diferentemente de outros analistas, penso que o próximo movimento do Banco Central deva ser na direção de iniciar um ciclo de baixa da taxa de juros. E por vários motivos: atividade econômica está fraquejando, temos uma crise de crédito latente e o real vem se valorizando”.
A seguir, a entrevista:
O governo deve anunciar até abril um novo arcabouço fiscal. Mas há quem defenda que teria sido melhor continuar com o teto de gastos. O que você acha?
O que temos hoje, na prática, não é apenas o teto de gastos. É o teto e o extratexto. Nossa realidade ao longo dos últimos anos tem sido composta pela Emenda Constitucional 95, que criou o teto, mais as ECs que permitiram que o gasto supere o teto. Tivemos a PEC 102, que tratou da cessão onerosa, em 2019, a PEC do Covid, em 2020, depois a PEC que mudou a forma de cálculo dos limites do teto, a PEC dos Precatórios, a PEC Kamikaze e agora a PEC da transição. Gostemos ou não disso, o padrão é que todo ano tem alguma PEC para furar o teto de gastos. Se não houvesse a previsão de um novo arcabouço fiscal, não tenho dúvida de que teríamos mais uma PEC extratexto em 2024. Esse padrão torna a política fiscal imprevisível.
É difícil comparar o conhecido com o que ainda não sabemos como será. Em uma entrevista recente, o Secretário do Tesouro Nacional disse que o objetivo do novo arcabouço fiscal é assegurar a sustentabilidade da dívida pública a longo prazo e retomar o grau de investimento. São declarações promissoras.
Qual é o limite máximo da dívida pública?
Não há um valor fixo a partir do qual a dívida pública entra definitivamente numa trajetória explosiva. Mas isso não significa que devemos baixar a guarda. O fato de a dívida ser em reais não significa que o risco de default seja zero. Defaults da dívida interna são mais raros do que os da dívida externa, mas acontecem.
O que precipitaria um default da dívida interna?
Defaults não acontecem porque o Tesouro fica sem caixa ou porque o Banco Central monetiza a dívida pública. O principal motivo do default da dívida interna é a percepção de injustiça. Ocorre quando os segmentos ativos da sociedade se recusam a transferir mais renda para os rentistas, para usar a frase do Keynes. Como a percepção de injustiça no pagamento da dívida é social e historicamente determinada, não há um valor fixo a partir do qual o default passa a ter alta probabilidade de ocorrer. Na maior parte das vezes, a materialização do default vem através de taxação extraordinária ou mudança unilateral nas regras de pagamento.
Em sua opinião, a dívida pública está em um patamar muito elevado?
O Brasil tem uma relação dívida/PIB maior do que a maioria dos países emergentes. Mas também tem volume de crédito e expressão de riqueza financeira maiores do que a de outros países. A demanda por dívida pública, por ativos sem risco de crédito e por liquidez tende a ser maior também. O critério relevante de sinalização do problema da dívida não está tanto no seu tamanho, mas sim no seu custo.
Mas o custo alto não é porque tem risco de default?
O elevado custo da dívida reflete sim a percepção coletiva de que o estoque de dívida é muito elevado e tem um risco substantivo de default. Sabemos que os mercados muitas vezes erram porque ficam afixados a percepções erradas do funcionamento da economia. Lembremos da previsão de que a expansão do balanço do Federal Reserve em 2008 geraria inflação. Talvez os mercados estejam errados na percepção da sustentabilidade da dívida, mas temos que respeitar a realidade das crenças coletivas. Como diz um amigo meu que está no governo: podemos discutir se Deus existe ou não existe, mas a fé com certeza existe. Uma consolidação fiscal certamente reduziria o prêmio de risco nos títulos do Tesouro.
Qual seria o ajuste do déficit público necessário, na sua opinião, para reduzir o risco da dívida pública?
Antes de mais nada, precisamos acertar os conceitos de dívida e déficit. Parte do problema das contas públicas é que não se utilizam os critérios contábeis do mundo privado. No cálculo do déficit, alguns itens entram no regime de caixa, outros no regime de competência. Dívidas judiciais só impactam o déficit quando pagas, para dar um exemplo entre outros. Além disso, não há consolidação patrimonial. Se um governo fizer uma má gestão da Petrobras, por exemplo, a queda no valor de mercado da participação do governo não tem impacto algum nem sobre o déficit nem sobre a dívida. Se a Petrobras não distribuir dividendos, não há efeito algum dela nas contas públicas. Posso dar uma infinidade de exemplos.
O balanço do Tesouro deveria ser feito segundo critérios de competência, captando o efeito de controladas e de participações minoritárias no balanço, englobando riscos fiscais etc. O déficit seria o demonstrativo de resultados do período. Usar os critérios da contabilidade privada facilitaria o entendimento do problema. Há muito para ser mudado na nossa legislação orçamentária.
Além dos problemas conceituais, o significado do déficit depende das expectativas. Um déficit neste ano sem visibilidade para os anos seguintes é muito diferente do mesmo déficit numa trajetória crível de controle da dívida. Quando há credibilidade na política fiscal, cai o custo de endividamento, facilitando a estabilização da dívida.
É claro que, do ponto de vista do controle da dívida, tudo o que importa é o resultado primário. Mas acredito que há mérito em impor uma regra de controle de gastos independentemente do resultado primário. Na minha visão, os gastos correntes do governo – salários, aposentadorias, programas recorrentes de transferências, custeio da máquina — têm que ficar constantes em termos reais, independentemente da trajetória do endividamento público.
Mas qual o motivo de controlar especificamente esses gastos?
Há um lado óbvio: esse controle ajuda na estabilização da dívida pública. Mas nossa realidade nos impõe um desafio adicional. E por vários motivos. De partida, os gastos correntes já são muito altos. Segundo, há evidência de descalabros nos gastos correntes, como os super salários e aposentadorias, desperdício de recursos mantendo estruturas inúteis e inchaço de pessoal. Terceiro, nossa capacidade de revisar gastos públicos, o chamado spending review, e determinar interrupção de programas ineficientes ou assegurar o foco das transferências tem sido pífia. Na nossa experiência, nada mais permanente do que um programa de gastos temporário. Quarto: ainda nem começamos a reforma administrativa. São razões poderosas para impor limites rígidos aos gastos correntes. Há um espaço fiscal enorme na redução dos gastos correntes.
Lula tem criticado a autonomia do Banco Central. Você concorda?
Instituições tem que ser pensadas nos casos difíceis, não nos casos fáceis. Eu fui presidente do Banco Central quando o Banco Central não tinha autonomia e em momento algum o então Presidente Fernando Henrique Cardoso interveio na minha gestão. Agora, imagine o que Bolsonaro, na ânsia de ganhar a eleição que o levou a propor a PEC Kamikaze, poderia ter feito num BC sem autonomia. A autonomia do Banco Central é um seguro contra o populismo em matéria monetária.
Há dois aspectos institucionais, no entanto, que acho que deveriam ser mudados na atuação do Banco Central pensando no arcabouço fiscal. O primeiro é cancelar as operações compromissadas e passar a ter depósitos remunerados no Banco Central. A dívida pública do Tesouro cairia. Claro que essa mudança não altera os termos do problema, mas colocaria o Brasil em sintonia com as práticas das economias desenvolvidas. Esse alinhamento de práticas é importante para a discussão, sempre subjetiva, porque dependente de expectativas, da sustentabilidade da dívida pública.
A outra é facultar ao Banco Central comprar dívida do Tesouro. Não se trata de controlar a taxa de juros, mas sim de usar o balanço do Banco Central como instrumento de estabilização de mercados em momentos de stress. Também aqui não há nada de novo, trata-se apenas de alinhar o nosso enquadramento institucional ao que já se faz em economias desenvolvidas.
Lula também criticou o Banco Central por manter uma taxa de juros excessivamente alta, o que aumentaria o custo da dívida. O que você acha?
Diferentemente de outros analistas, penso que o próximo movimento do Banco Central deva ser na direção de iniciar um ciclo de baixa da taxa de juros. E por vários motivos: atividade econômica está fraquejando, temos uma crise de crédito latente e o real vem se valorizando.
Do ponto de vista mais fundamental, precisamos coordenar as políticas fiscal e monetária. As diretrizes básicas da política monetária são fixadas pelo Conselho Monetário Nacional composto pelos Ministros do Planejamento, Fazenda e Banco Central; cabe ao Banco Central operacionalizá-las. Pensando na institucionalidade fiscal adequada, minha sugestão seria replicar esse arranjo na discussão das diretrizes da política fiscal. O Banco Central teria voz e voto e a operacionalização estaria a cargo da Fazenda e do Planejamento.
Mudando um pouco de assunto: o governo tem batido na tecla da reindustrialização. Como você acha que a política fiscal pode ajudar nesse objetivo?
Parte dos problemas da indústria advém do fato dela pagar mais impostos do que a agricultura ou o setor de serviços. Uma boa reforma tributária, na linha que tem sido propugnada pelo Bernard Appy, certamente daria um impulso à indústria. Outro aspecto de relevo é o protecionismo. Ao contrário do que parece, a indústria tem muito a se beneficiar da abertura comercial, porque a modernização do parque industrial depende de maquinário importado. Redução de tarifas, em especial na importação de bens de capital, ajudaria muito.
O que desconfio é do uso de recursos públicos para subsidiar a indústria. O Estado já tem muito a fazer nas suas áreas precípuas de atuação, como saúde, educação, segurança pública, defesa nacional e ainda deve investir mais em ciência e tecnologia, educação e meio ambiente. Não vejo nem necessidade nem espaço fiscal para subsidiar a indústria. No papel, é fácil escrever os critérios que devem nortear uma boa política industrial; na prática, política industrial tem sido o paraíso dos lobbies privados na captura do Estado.
Na PEC de transição consta que o novo arcabouço fiscal tem que ser feito via lei complementar, não emenda constitucional. Isso foi criticado porque torna os controles de gastos mais fáceis de serem contornados. Você concorda?
Estou convencido de que nossos problemas têm três aspectos distintos. Um deles é a captura do Estado. É ação de fatores históricos como o patrimonialismo e o corporativismo. Outro é a presença de ideais erradas, do tipo O Estado é o motor do crescimento da economia. Mas além de interesses particulares e ideias equivocadas, há uma terceira barreira para avançarmos em direção ao bem comum: a extraordinária complexidade político-institucional do País.
É um tema amplo, mas tem a ver com sua pergunta. A Constituição de 1988 é excessivamente detalhista em matéria de política econômica e há um exagero no número de entidades que podem questionar a constitucionalidade de leis perante o Supremo. Como consequência desses dois fatores, o Executivo sabe que modificações na política econômica que possam ser questionadas alegando violação de algum dispositivo constitucional só ficam seguras se aprovadas por PECs. Não surpreende que nossa Constituição seja recordista mundial em emendas.
Acontece que a política econômica, no mundo contemporâneo de aceleradas mudanças, tem que ser capaz de responder com celeridade às demandas da sociedade. PECs exigem quórum elevado e são por natureza mais lentas. Tenho defendido há muito tempo a desconstitucionalização de tópicos que dizem respeito a políticas econômicas. Sairiam do texto constitucional, mas continuariam em vigor como lei complementar. Não se trata de princípios, como gratuidade de educação e saúde, mas sim de detalhamentos de políticas econômicas que tem que ser flexíveis para melhor adaptarem às circunstâncias de cada momento da história.
Na minha opinião, ter o novo arcabouço fiscal em lei complementar é um avanço. Mas seria muito importante que as indexações e vinculações hoje presentes na Constituição passem a ter o status de lei complementar também. Em um sistema com muitas distorções, nem sempre a remoção isolada de uma distorção melhora o resultado do todo e algumas vezes pode até, paradoxalmente, ser contraproducente. Indexações e vinculações orçamentárias hoje vigentes podem ter refletido bem as necessidades de passado, mas não devem ser eternizadas.
Mas isso não reduziria o poder do Legislativo?
Sim, reduziria o poder político de barganha do Legislativo. O problema é que o equilíbrio entre Executivo e Legislativo em matéria de política econômica é hoje desbalanceado em favor do Legislativo. Ao passar o detalhamento de política econômica para o status de lei completar, fica mais fácil para o Executivo encaminhar as mudanças necessárias. Isso é em linha com a prática das economias mais desenvolvidas. Veja o caso da Covid: ninguém precisou mudar a Constituição para permitir mais gastos públicos na pandemia ou permitir aos Bancos Centrais que comprassem títulos do Tesouro do seu próprio País.