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Carlos Ari Sundfeld: O Estado vai mesmo melhorar as plataformas digitais?

A extensão das mudanças no mundo digital talvez nos esteja a sugerir menos afoiteza e bem menos autoconfiança de reguladores administrativos, juízes e legisladores

Globo

Vivemos uma ebulição de iniciativas tendo como alvo as plataformas digitais. Projetos de leis, processos de fiscalização, atos de regulação administrativa, inquéritos policiais e ordens judiciais têm se disposto a disciplinar, limitar, cobrar, fiscalizar, ameaçar, responsabilizar e punir.

A onda sugere heterodoxia, ordens radicais, afobação. É que se espalhou, entre juízes, legisladores e gestores públicos, a sensação de que estamos sendo tragados por um mundo novo e perigoso. E o maior problema seria a ausência de Direito e de Estado. A tendência é ampliar, ao máximo e com urgência, o peso das normas e das autoridades sobre o mundo digital.

Será um bom ambiente para criar um novo regime legal quanto aos direitos e deveres das empresas e dos usuários, bem como sobre os poderes do Estado em relação a todos eles?

Embora as situações não sejam iguais, a efervescência me remete à década de 1980. Por um lado, o Brasil se abria politicamente, em meio a riscos (viera a Lei da Anistia em 1979, surgiram partidos e lideranças, a censura foi ficando para trás, mas os golpistas ainda conspiravam). Por outro, havia uma grande crise econômica que levaria a sucessivos planos de combate à inflação, ao desequilíbrio fiscal, ao endividamento. E, a partir do início da década de 1990, à Reforma do Estado.

Tudo parecia urgente e fora de lugar. Era preciso tomar providências. Como jovem professor de direito público pude acompanhar ou participar de debates e ações. E aprendi algumas coisas.

Uma experiência, bem física, nos tempos iniciais da Constituinte, em 1986, foi o fim de semana em que fiquei de joelhos em um salão no Parque Fernando Costa, em São Paulo, agrupando no chão, recortando com tesoura e grampeando em outra ordem milhares de ideias que tinham surgido em encontros sobre possíveis direitos constitucionais para crianças e adolescentes. Fiquei em carne viva, mas achei na época que fazia sentido. É como se o Brasil fosse um quebra-cabeças ainda por inventar e me parecesse interessante ajudar a descobrir a melhor forma para as peças.

Ali aprendi, de joelhos, uma certa postura de humildade e calma, bem como a prestar mais atenção às palavras e percepções alheias. Atualmente, tenho sentido falta disso, por exemplo, nas opiniões e decisões de juízes de tribunais superiores sobre plataformas digitais (bem, também em outros assuntos). Eles me passam a sensação de que, apesar das complexidades e incertezas, já estão cheios de confiança e imediatismo sobre os caminhos a seguir.

Outra experiência minha dos anos 1980 foi mais teatral. Bem no espírito da época, alguém resolvera simular em São Paulo uma mini Constituinte para enviar a Brasília uma proposta completa e independente de Constituição. Fui um dos três convocados a compor a Comissão de Ordem Econômica e Social e, sinceramente, achei que não ia dar certo. Mas fiquei curioso e não quis ficar fora. Dali em diante foram meses de reuniões atrapalhadas — é que, dos outros membros, ambos juristas consagrados e bem inteligentes, um queria criar no Brasil sua república socialista de sonhos e o outro sonhava com um capitalismo anárquico. Ensanduichado, ao menos exercitei o bom humor. Claro que deu em nada.

O insucesso também me fez, a partir de então, desconfiar das propostas na base do tudo ou nada. Passei a acreditar profundamente na busca paciente de consenso. A seguir, os longos trabalhos da Constituinte brasileira de 1987-1988, bem como seu resultado — temos democracia há 35 anos, com algum progresso social — reforçaram em mim a importância desse método. A recente Constituinte chilena — que colecionou radicalismos e terminou em frustração em 2022 — manteve forte minha convicção a esse respeito.

Agora, em relação ao mundo digital, sinto no ar muita paixão, extremismo e alguma vaidade e ambição, nas certezas quanto à capacidade de a regulação legislativa, administrativa ou judicial melhorar as coisas e à incapacidade de o mercado e a sociedade se organizarem e amadurecerem. Boa parte das propostas e medidas que voam por aí apostam no tudo ou nada.

A extensão das mudanças no mundo digital talvez nos esteja a sugerir menos afoiteza e bem menos autoconfiança de reguladores administrativos, juízes e legisladores. Eu apostaria em gradualismo, comedimento e busca de consenso.

Seria bom, inclusive, lembrar dos desarranjos causados pelas intervenções estatais bruscas e extremas — por vezes malucas — entre o Plano Cruzado de 1986 e o Plano Collor II de 1991: congelamento de preços, confisco de moeda, etc. No começo, era só alegria, todos batiam palma. Passados os meses, a arrogância estatal só tinha feito aumentar a confusão.

As coisas só iriam evoluir quando, com o Plano Real de 1994, vieram mudanças mais jeitosas e inteligentes. Em seguida, com a Reforma do Estado, o mundo público descobria que parte do problema estava nele próprio, que também precisava melhorar. Foi aí, por exemplo, que foram extintos bancos estaduais que funcionavam como caixas paralelos, surgiram inovações institucionais como agências reguladoras e organizações sociais e foram editadas leis de processo administrativo para tentar diminuir arbítrios, e assim por diante.

Em suma, no debate sobre o mundo digital, é bom o Estado se ocupar também de seus próprios defeitos. Afinal, quais garantias de isenção, prudência, transparência e de efetivo respeito ao Direito os atuais arranjos institucionais da administração pública, e mesmo do Judiciário, nos oferecem para lhes confiarmos ainda mais poderes de intervenção nesse novo mundo?

Link da publicação: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2023/05/carlos-ari-sundfeld-o-estado-vai-mesmo-melhorar-as-plataformas-digitais.ghtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

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Carlos Ari Sundfeld