Regime fiscal não é bom, mas reduz risco iminente, diz economista-chefe da Verde
Valor
A Verde Asset, liderada por Luis Stuhlberger, está mais otimista com a atividade brasileira mais por fatores estruturais do que por aqueles de economia política, avalia o economista-chefe da gestora, Daniel Leichsenring. Reformas importantes – a maioria herdada de governos anteriores, além da boa perspectiva para a tributária no mandato corrente – e o novo regime fiscal da atual gestão, que reduz riscos iminentes, podem viabilizar uma aceleração do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil num cenário internacional mais benigno, diz Leichsenring.
Ele destaca, porém, ver problemas no novo arcabouço fiscal, por embutir aumento de gastos públicos de que o Brasil não necessita, além de exigir uma elevação de carga tributária importante para bancar essa alta de despesas. “Você gasta muito e gasta errado.”
O dólar no mercado global, medido por sua taxa real efetiva de câmbio -em relação aos países mais importantes para o comércio americano -, está “em níveis meio extremos de valorização” e, por isso, a chance maior ao longo do tempo é de normalização, segundo o economista. Segundo ele, historicamente, em momentos em que o dólar se desvaloriza na comparação com o resto do mundo, o crescimento no Brasil é mais forte e, inclusive, surpreende para cima. “O risco preponderante para o meu cenário é o dólar, por algum motivo, continuar subindo”, afirma Leichsenring.
A Verde projeta crescimento de 2,5% para o PIB em 2023 e algo entre 2% e 3% também em 2024 – acima do consenso de mercado da pesquisa Focus, do Banco Central, de 2,2% e 1,3%, pela ordem. “Eu acho que as pessoas ainda estão com um tom muito negativo”, diz Leichsenring em referência a 2024. “Isso me surpreende porque o juro vai começar a cair.”
Acho que as pessoas ainda estão com um tom muito negativo [para 2024]”
A expectativa do mercado é que o Cômitê de Política Monetária (Copom) do BC anuncie hoje o primeiro corte da Selic após quase um ano da taxa básica de juros em 13,75%. Analistas estão divididos, no entanto, quanto ao ritmo inicial dessa redução, se de 0,25 ou 0,5 ponto percentual. “Se eu estivesse lá, não cortaria 0,5 ponto de jeito nenhum. As expectativas de inflação ainda estão desancoradas para frente”, afirma Leichsenring.
Para ele, trocas de comando e diretoria na autoridade monetária preocupam menos do que agressões “institucionais”, como ele define, e cita como exemplo a discussão sobre mudar as metas de inflação, o que acabou não se concretizando. Abaixo os principais trechos da entrevista.
Valor: Por que a Verde está mais otimista com a economia do Brasil?
Daniel Leichsenring: O que nos tornou um pouco mais construtivos é uma combinação de fatores, que tem três elementos importantes. O primeiro é o conjunto extenso de reformas que o Brasil implementou desde o [governo do ex-presidente Michel] Temer. O teto de gastos, embora tenha acabado, teve, por algum tempo, efeito muito relevante, levou a uma série de melhorias na estrutura do mercado de capitais, passamos por um período de taxas de juros muito baixas. Teve também a redução do BNDES, com consequências relevantes, na medida em que a alocação de capital passa a obedecer uma lógica de maior retorno esperado. Houve ainda a reforma trabalhista, com queda de mais de 50% no número de processos, a reforma da Previdência e a aprovação da autonomia do Banco Central. Agora, temos uma boa perspectiva de aprovar a reforma tributária que, embora imperfeita, é um salto inacreditavelmente bom para o Brasil. E tem uma agenda sobre garantias que está avançando e é muito boa para ajudar o mercado de crédito a funcionar melhor.
Valor: Qual é o segundo fator?
Leichsenring: O arcabouço fiscal, que eu não reputo como bom, porque ele inclui aumentos de gastos públicos de que eu não acho que o Brasil precisa e uma elevação da carga tributária importante para dar conta desses gastos. O Brasil, comparado a qualquer emergente, tem uma carga tributária muito alta, nosso gasto é maior e a efetividade é um desastre. Nossa desigualdade de renda, antes ou depois do gasto público, é mais ou menos a mesma. Você gasta muito e gasta errado. Embora o regime fiscal novo não seja bom, ele tem embutido mecanismos que, ao menos, diminuem riscos de descontinuidades iminentes. Mas não garante solidez fiscal sob qualquer circunstância. Se tivéssemos permanecido com o teto, estaríamos muito mais animados.
Valor: E o terceiro elemento?
Leichsenring: O cenário internacional, que é absolutamente crucial e, em ordem de importância, maior do que os outros dois. Olhando os ciclos econômicos do passado no Brasil, houve vários episódios em que o país se engajou em uma agenda de reformas e aquilo não significou imediatamente mais crescimento, porque o contexto internacional era muito difícil. Consigo citar, pelo menos, dois episódios: nos anos 1960, houve uma série de medidas de cunho liberal e modernizante, como a criação do Banco Central, mas foi quando o cenário internacional melhorou que as reformas já implementadas acabaram surtindo efeito e houve uma aceleração de crescimento muito grande nos cinco anos posteriores. O mesmo aconteceu no governo Fernando Henrique, em que o Brasil fez uma quantidade de reformas espetacular, como o próprio Plano Real e as privatizações, mas o crescimento despontava todo ano. Quando o cenário internacional melhorou, a partir do fim de 2002, o Brasil acabou se beneficiando das reformas e o país cresceu muito mais aceleradamente, a despeito das contrarreformas que foram aparecendo pelo caminho e que não foram pequenas. Se eu fosse comparar o estágio do ciclo, eu diria que a gente está parecido com 2002.
Valor: Como medir um exterior mais ou menos benigno?
Leichsenring: Um indicador que, para mim, resume o cenário internacional é a taxa real efetiva de câmbio do dólar. A gente consegue ver a força do dólar em relação a outros países, ponderado pela cesta de comércio americana – Europa, China e México, por exemplo, são importantes, enquanto o Brasil tem peso muito pequeno. O que a gente observa ao longo do tempo é que, nos períodos em que o dólar está se fortalecendo em relação às moedas do mundo, há uma tendência de o crescimento ser mais fraco no Brasil e surpreender recorrentemente para baixo. Já os momentos em que o dólar se desvaloriza em relação ao resto do mundo são períodos em que o crescimento no Brasil é mais forte e a surpresa de crescimento tende a ser bem significativa para cima.
Não acho que o BC deveria, no finalzinho do processo, ceder à pressão”
Valor: Como está esse indicador atualmente?
Leichsenring: Eu olho para o dólar e vejo muito mais probabilidade de, ao longo do tempo, ele perder valor em relação às demais moedas do que ganhar. Estamos em níveis meio extremos de valorização do dólar contra o resto do mundo. Ele voltando para patamares mais normais, significa que a gente vai ter, provavelmente, um período de maior disponibilidade de financiamento para economias emergentes. E o Brasil, em particular, acaba se beneficiando disso, porque o mundo emergente mudou muito nos últimos anos. Tem uma série de riscos geopolíticos associados à China, Rússia, Turquia. O risco preponderante para o meu cenário é o dólar, por algum motivo, continuar subindo.
Valor: Essas questões geopolíticas não podem dificultar a perda de força do dólar?
Leichsenring: Riscos geopolíticos são relativamente bons para o Brasil se eles não se materializarem em catástrofes. Se ficarem apenas como riscos, acho que a gente consegue navegar relativamente bem. A reforma tributária, embora tenha um período de maturação muito mais longo do que eu gostaria, coloca o Brasil como uma possibilidade para receber investimentos que ajudem o mundo no reposicionamento das cadeias de produção. O Brasil é um país totalmente fechado. Temos a possibilidade histórica de dar um passo.
Valor: Em relação especificamente ao PIB de 2023, cujo primeiro trimestre foi impulsionado pela agropecuária, o que esperam para o resto do ano?
Leichsenring: O PIB no Brasil vem surpreendendo para cima há 12 trimestres. Não são números bombásticos, mas são histórias de surpresa. Colocar o primeiro trimestre de 2023 na conta exclusiva do agro Houve uma contribuição extraordinariamente positiva, mas não é só isso. Vemos um crescimento positivo ainda no segundo trimestre, algo como 0,3% [ante o primeiro], e perto de 2,5% no ano. Vamos ter queda do PIB agrícola no segundo trimestre, porque o primeiro foi muito forte, e, ainda assim, temos um PIB positivo. É evidente que tem uma desaceleração da economia, induzida pela política monetária, necessária para dar conta do problema da inflação. Mas, de novo, acho que tem outros elementos que contam uma história de um crescimento, de fato, mais forte e consistente.
Valor: Isso vale para 2024?
Leichsenring: Eu acho que as pessoas ainda estão com um tom muito negativo. Isso me surpreende porque o juro vai começar a cair. O PIB está surpreendendo para cima faz muito tempo, e o consenso está sempre colocando para baixo. Parece que estão cometendo o mesmo erro [para 2024]. Vai virar a chave da política monetária, vamos estar com uma taxa de juros de um dígito no fim do ano que vem – acho que terminamos esse ano com a Selic em 12% e entre 9% e 9,5% em 2024. Tudo bem, tem a defasagem da política monetária, não dá para esperar que a atividade comece a acelerar rapidamente, mas o fundamento para ter um ciclo mais positivo à frente está aí. Eu não espero também uma contração fiscal no ano que vem mais do que compensando o monetário. Acho que o PIB pode crescer entre 2% e 3% em 2024.
Valor: O crescimento mais forte não atrapalha o trabalho do BC?
Leichsenring: Começa um processo de queda dos juros que tem fundamento, a inflação está em trajetória melhor. Esperamos 4,8% para o IPCA neste ano e algo perto de 4% no ano que vem. Não é um BC que vai cortar juros sem qualquer apego aos manuais de boas práticas. Acho que tem uma certa angústia das pessoas. O crescimento econômico mais forte, inclusive, ajuda o BC, no sentido de que a possibilidade, hoje, de o governo apertar um “botão do pânico” – de precisar fazer alguma coisa porque os juros não baixam, a atividade despenca e há perda de popularidade – é menor. Qual o custo de verdade, até agora, de desinflacionar a economia? O crédito preocupa na medida em que ele, eventualmente, leve a um processo mais recessivo. Não foi o que a gente observou; o crédito vai crescer no ano. Na prática, o custo de emprego da desinflação foi muito pequeno. Essa história de “credit crunch” – de um processo mais descontrolado de fechamento de empresas e não linearidade na economia -, para mim, desde o começo, nada mais era do que uma boa narrativa. Não é o que a gente está vivendo e, olhando para frente, quando começar a cortar juros, vamos viver menos ainda.
Valor: Tem espaço para o BC começar a cortar a Selic nesta semana já com 0,5 ponto percentual?
Leichsenring: Se eu estivesse lá, não cortaria 0,5 ponto de jeito nenhum. As expectativas de inflação ainda estão desancoradas para frente, embora tenha havido, com a manutenção da meta de inflação em 3% – uma atitude absolutamente acertada -, certa reancoragem. Mas ela parou no meio do caminho. Eu cortaria 0,25 ponto e iria com mais cautela. É um custo relativamente pequeno e que leva a benefícios de longo prazo muito melhores. O Banco Central, ao longo dos últimos meses, teve uma atitude irretocável. Não vejo por que mudar o que tem dado certo, a despeito das críticas muito fortes.
Valor: A resistência do BC a essas críticas ajudou a reduzir as expectativas de inflação?
Leichsenring: Com certeza. Imagina o caso alternativo, em que na primeira pressão ele tivesse cortado os juros. A gente estaria, certamente, em uma situação muito diferente. Eu não acho que o Banco Central deveria, no finalzinho do processo, ceder à pressão, não vejo nenhum benefício. Ele tem atuado de maneira técnica e eu acho que deveria continuar assim.
Valor: O futuro da composição da autoridade monetária gera preocupação?
Leichsenring: Me preocupa muito mais a agressão institucional, como foi a discussão sobre mudar o regime de metas. A gente já passou por bancos centrais mais “hawkish” e mais “dovish”, mais duros e mais lenientes com a inflação. O sistema sobreviveu, corrige no novo ciclo.
Valor: Como a percepção mais positiva de agora com o Brasil difere de outros momentos?
Leichsenring: Fomos otimistas em 2009, com o Brasil saindo da crise financeira global. Tínhamos uma posição confortável do ponto de vista do sistema financeiro aqui, que sempre foi muito sólido. Não tinha nada que levasse a pensar que o Brasil estava estruturalmente impedido de se recuperar daquele choque. Se fizesse um conjunto de políticas para compensar o efeito da crise, o Brasil poderia voltar rápido. Fomos bem naquele pós-crise; houve excessos depois, no fiscal e no parafiscal, que deu no desastre de 2014 em diante. O Brasil se perdeu nesse processo e, aí, estávamos muito pessimistas. Demoramos um pouco para virar a chave. O governo Temer foi uma surpresa incrível de boa para o país. Agora, estou animado com fatores mais estruturais, menos cíclicos ou da economia política. Esses não me animam muito.
Valor: Você mencionou que o Brasil cresceu nos anos 2000 a despeito de contrarreformas. Elas não são um risco atual também?
Leichsenring: Eu vejo, hoje, como menos provável uma agenda de contrarreformas muito intensa. A principal seria a do arcabouço fiscal e isso foi moderado. Em outros casos, houve tentativas, em relação ao marco do saneamento, por exemplo, mas o Congresso barrou. Não estou falando que não haverá contrarreformas, mas eu acho que elas não vão ser suficientes para mais do que compensar os outros efeitos que eu vejo como positivos. O que mais me preocupa é a história de acabar com o TLP [Taxa de Longo Prazo do BNDES] ou criar instrumento de financiamento alternativo do banco, um crescimento muito grande.
Valor: Recentemente, agências de classificação de risco melhoraram a nota de crédito ou a perspectiva para o Brasil. Até 2026, o país volta ao grau de investimento?
Leichsenring: Eu não contaria com isso. Eu acho que havia certa desconexão entre a nota que o Brasil tinha e a evolução dos fundamentos, em grande medida pelas reformas implementadas, particularmente se comparado a pares semelhantes. Acho que foi uma adequação a uma realidade que já estava lá. Daqui para frente, para ter grau de investimento, a gente precisaria ver uma melhora bem mais significativa nas contas públicas, por exemplo, na perspectiva de gerar superávits que, no mínimo, estabilizem a dívida. Mais crescimento ajuda, o fiscal vai ser melhor, não pode se perder e fazer coisas que prejudiquem.
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