De volta da reunião de primavera do FMI, Mario Mesquita relata que principal pergunta dos investidores sobre o Brasil foi sobre o rumo das contas públicas; ele diz que governo deveria encampar ajuste pelo lado das despesas
Estadão
De volta da reunião de primavera promovida recentemente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial, o economista-chefe do banco Itaú, Mario Mesquita, disse ter percebido um aumento da preocupação dos investidores estrangeiros com a situação das contas públicas do Brasil.
“Dessa vez, pela primeira vez em muito tempo, eu tive investidores estrangeiros tomando a iniciativa de discutir temas fiscais brasileiros”, afirma Mesquita. “Antes, o fiscal era a última coisa que eles queriam discutir. Agora, é uma das primeiras, se não for a primeira.”
O cenário, pondera, não é de uma crise severa, mas liga um sinal de alerta num momento em que governo mudou as metas fiscais dos próximos anos e postergou o ajuste das contas públicas.
Mesquita considerou “prematura” a mudança de meta e diz que o Brasil precisa encaminhar um ajuste pelo lado da despesa se quiser estancar o crescimento da dívida.
“Eu entendo que existem muitas demandas sociais no País, mas entendo também que tem uma agenda de revisão do gasto público no próprio governo que poderia permitir um uso mais eficiente dos recursos do Estado do que simplesmente ir aumentando o gasto e buscando receita”, diz.
A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.
Qual é a avaliação do sr. sobre o cenário atual do Brasil?
Antes de falar do Brasil, deixa eu falar do contexto global. Eu estive na reunião de primavera (hemisfério norte) do FMI e do Banco Mundial. Eu aproveitei para falar também com investidores em Nova York. O que chama a atenção é o que estão chamando de excepcionalismo da economia americana, que, entre as desenvolvidas, é a que mais cresce e de forma mais consistente. Estamos projetando 2,5% de crescimento para os EUA este ano. O FMI está mais otimista e projeta 2,7%. Há um certo consenso otimista a favor do crescimento nos EUA. Algumas pessoas dizem que isso ainda tem a ver muito com o impulso fiscal. Só que a economia tem um mercado de trabalho aquecido e que deve sustentar a atividade ainda por alguns trimestres pelo menos. A economia americana vai bem. A economia europeia nem tanto. O crescimento é bem mais fraco e, por isso, a Europa vai cortar juros antes dos Estados Unidos.
E como fica a política monetária dos EUA?
O debate sobre a política monetária mudou bastante. Havia uma corrente defendendo o corte de juros o mais rápido possível. E isso mudou. E já tem o debate, agora, se os juros caem ou não este ano. Nós achamos que caem, mas só em dezembro. Um corte apenas.
Tem gente que está falando em possível alta…
Essa chamada última milha do processo de desinflação, que é levar a inflação da vizinhança de 3% para 2%, está se mostrando bem mais difícil. Em parte, isso está acontecendo porque nos Estados Unidos – e assim como em outros lugares – você está com uma desinflação em um cenário em que o mercado de trabalho está muito apertado. Não tem refresco desse lado. Os serviços seguem pressionados. Isso torna o processo mais lento. Não sei se é o caso já de pensar numa reversão da política monetária, ou seja, em alta de juros. Me parece que o risco de o Fed (Federal Reserve, BC dos EUA) cortar prematuramente é maior do que o risco de ele cortar de forma atrasada.
Por quê?
Porque o risco de cortar rápido demais é mais difícil de consertar do ponto de vista das expectativas do que o risco de retardar um pouco o ciclo de ajuste. E lá também existe o debate de que, dado que o juro real está onde está e a economia não dá sinais de arrefecer, será que o juro real neutro não subiu mais ou, pelo menos, está ainda mais elevado circunstancialmente? Os mercados estão olhando basicamente para isso, para os Estados Unidos, para quando o Fed vai cortar e qual vai ser intensidade. Esse tem sido a principal determinante do humor do sentimento dos mercados mundo afora. E no Brasil, também não é diferente. O noticiário externo está fazendo mais preço. O que não quer dizer que o doméstico não seja importante. Segue sendo, mas o externo tem dominado.
Qual é consequência desse cenário internacional para a economia brasileira?
A política monetária de juros altos por mais tempo nos Estados Unidos não favorece a extensão de ciclos de flexibilização monetária nos mercados emergentes. É um elemento que não ajuda. E por que não ajuda? Com todo o resto constante, juros mais altos lá fora significam dólar mais forte . O dólar mais forte não ajuda no controle da inflação aqui e acaba não ajudando o Banco Central a reduzir os juros. É claro que outros fatores podem se contrapor, mas eu estou falando só isoladamente desse aspecto. Torna o cenário mais desafiador.
E qual é a leitura em relação ao Brasil?
Eu acho que a discussão acaba centrando na política monetária, mas, dessa vez, pela primeira vez em muito tempo, eu tive investidores estrangeiros tomando a iniciativa de discutir temas fiscais brasileiros. Por muito tempo, o fiscal era uma coisa que você incluía na apresentação, mas eles focavam em outros assuntos. E, dessa vez, como já aconteceu algumas vezes na minha carreira, eu comecei de cara a ter de responder a perguntas sobre (a política) fiscal. Tem a ver com o timing também do anúncio da mudança (de meta) que houve aqui dentro. Mas me chamou a atenção essa mudança de postura.
Um aumento nítido de preocupação?
Um aumento de preocupação. Não é que as pessoas estejam abandonando o Brasil. Já não estavam muito posicionadas no Brasil. Mas me chamou a atenção essa mudança de postura. Antes, o fiscal era a última coisa que eles queriam discutir. Agora, é uma das primeiras, se não for a primeira.
Fazia quanto tempo que isso não acontecia?
Bastante tempo. Eu acho que desde a época pré-teto (de gastos). Isso chamou a atenção, mas também tem uma discussão mais benigna sobre a resiliência da economia brasileira. Ela está novamente surpreendendo positivamente em termos de PIB. Houve também bastante discussão sobre o que o Copom pode fazer ou não nesse ambiente internacional mais incerto e também com a incerteza fiscal relevante aqui no Brasil. Mas o que me chamou atenção foi de que mudou a ordem das perguntas.
E o que o sr. achou da mudança da meta?
Prematura. As pessoas têm defendido que, do ponto de vista quantitativo, não é muita coisa – e não é mesmo – , mas a sinalização é de que, talvez, a prioridade seja garantir condições para o crescimento do gasto e não para, eventualmente, estabilizar a dívida, que já é bastante elevada para um país emergente.
É aquilo que a gente sempre fala. Não é a foto, é o filme. E o filme é de uma dívida que é alta e segue crescendo. Eu entendo que temos muitas demandas sociais no País, mas entendo também que tem uma agenda de revisão do gasto público no próprio governo que poderia permitir um uso mais eficiente dos recursos do Estado do que simplesmente ir aumentando o gasto e buscando receita. Eu observo também que o Ministério da Fazenda tem procurado conter esse ímpeto. Só que é difícil num governo em que apenas um ou dois ministérios estão jogando na defesa e o resto todo jogando no ataque. Esses ministérios acabam ficando muito sobrecarregados.
Houve uma maior preocupação dos investidores com o Brasil e o governo reduziu a meta de superávit para zero. Qual é a consequência desse cenário?
Quanto mais adiarmos uma sinalização de estabilização da dívida, mais difícil é a melhora da nossa qualificação soberana para o País sonhar em voltar, por exemplo, a ser grau de investimento, o que ampliaria a disponibilidade de capital e reduziria o custo de capital na nossa economia. De certa forma, é isso. Se nós, como sociedade, decidimos que precisa gastar mais aqui e agora e que estabilização da dívida vai ficar postergada indefinidamente, a consequência é que passaremos a ter de depender, mais e mais, da poupança doméstica para financiar essa dívida, e não da poupança global.
E o Brasil cresce menos…
O custo de capital mais alto não ajuda o crescimento
A dívida estabiliza no seu cenário?
No nosso cenário, não tem estabilização nos próximos anos. Precisaria aumentar o superávit primário para, pelo menos, 1,5% do PIB para estabilizar a dívida. Neste ano, devemos ter um déficit em torno de 0,6% do PIB. Tem um esforço fiscal importante a ser feito à frente, que eu entendo que vai ser perseguido, predominantemente, pelo lado da receita. Não sei se o Congresso vai concordar com essa demanda por taxação extra, dado que a carga tributária do Brasil já é elevada. Então, o dilema fiscal está colocado. Não acho que seja algo que nos leve a uma situação de estresse ou de crise. Mas não deixa de ter seu impacto, por exemplo, elevando o custo de capital, reduzindo a atratividade dos projetos de investimento.
Mas o banco trabalha com a dívida em quanto para os próximos anos?
Até o final de 2025, a dívida chega a 80,6% do PIB. Basicamente, crescendo algo como três pontos percentuais do PIB por ano.
E qual é o montante necessário para estabilizar a dívida?
Algo em torno de R$ 200 bilhões
Não é uma situação de risco? Na próxima eleição, a dívida do País estará num patamar elevado.
É um patamar que não nos deixa super confortáveis. Eu acho que o mercado acaba não reagindo tanto a patamares, mas mais às circunstâncias. Se tem uma dívida elevada, mas sinaliza que quer estabilizá-la, é uma coisa. Se você tem uma dívida alta, mas não dá nenhuma sinalização muito crível de que tem uma estratégia para controlá-la, é um outro problema. Eu acho que vamos precisar observar como esse debate vai evoluir dentro da classe dirigente do País nos próximos anos.
E seria com uma nova regra fiscal?
Pode ser uma nova regra ou essa regra (arcabouço fiscal) aplicada mais rigorosamente e acoplada a uma revisão dos gastos. Dado o nível da carga tributária, uma ênfase maior no controle de despesas vai ter de acontecer. Tem também uma literatura acadêmica que sugere que ajuste fiscal pelo lado da despesa é menos contracionista para a atividade do que ajuste pelo lado da receita. Eu acho que esse argumento e o fato objetivo de que a carga tributária já é elevada deveriam nos levar a caminhar para um controle de gastos mais rígido. O arcabouço dá condições para, eventualmente, implementar isso, mas ele precisa ser, de fato, ativado.
Mas o arcabouço não perdeu legitimidade com as medidas adotadas?
Eu acho que não ajudam a credibilidade do arcabouço.
Num encontro com jornalistas, o presidente Lula novamente criticou o ajuste fiscal. O sr. vê disposição política para enfrentar a questão do gasto?
Eu entendo que é natural que lideranças políticas no mundo tenham preocupação com o ajuste de despesas, porque pode ter impactos sobre a aprovação. Mas tem evidentes limites do quanto o Estado pode oferecer para a sociedade. E acho que essa é uma discussão que devemos ter em algum momento. Se a gente tem uma carga tributária elevada, uma dívida pública elevada e os gastos também são elevados, talvez, a gente tenha de repensar um pouco as nossas expectativas sobre o que o Estado pode oferecer para a sociedade e para quem. O Brasil é um país campeão de tratar os desiguais de forma igual, oferecendo subsídios, por exemplo, para pessoas que não precisam. Eu acho que essa revisão dos gastos é superimportante. Eu tenho expectativa de que isso gere um aumento de eficiência. Na minha visão, assegurar a solvência do Estado é mais importante para governos que querem que o Estado ofereça serviços. Eu não acho que a responsabilidade fiscal e social estejam divorciadas. Elas andam juntas.
Essa agenda de despesa sai nesse governo?
Ainda tem tempo. Eu acho que uma coisa é a retórica de campanha e o discurso, e outra coisa são os fatos. A aritmética da dívida é desafiadora e ela, especialmente, torna-se mais desafiadora se você não contempla a contenção de despesa.
O sr. pode dar exemplos de gastos que podem ser cortados?
Não vou entrar em detalhes até para não criar reações corporativas exageradas, mas pode focalizar. Há uma sobreposição de programas de transferências de renda. Você tem algumas categorias do funcionalismo com salário de ingresso muito mais elevado do que o equivalente no setor privado. Isso é de conhecimento comum e dificulta até a gestão de pessoas dentro do setor público, o que é fundamental para que o Estado possa oferecer serviços de qualidade.
Tem muito aquela questão de tratar os desiguais de forma igual. Você oferece alguns serviços públicos de forma gratuita quer a pessoa esteja na base da pirâmide de renda quer a pessoa seja de classe média ou classe média alta. Não seria o caso de focalizar para atender melhor as pessoas da base da pirâmide? Reduzir os subsídios a uns e oferecer mais a outros? Eu acho que é um pouco por esse lado.
Como nos casos de educação e saúde, por exemplo…
Você trata todos iguais quando não são e oferece o mesmo grau de proteção, independentemente do nível de renda e as alternativas que a pessoa pode ter. A minha trajetória acadêmica inicial foi a que muita gente passa. Eu estudei em colégio privado e depois fui estudar numa universidade pública que não custava nada.
Poderia ter pago…
Poderia ter pago.
Mas é uma discussão muito difícil no Brasil…
É difícil, mas é necessária. O professor Marcelo Abreu, da PUC do Rio, foi meu orientador e editou um texto muito importante chamado A Ordem do Progresso. É um livro sobre a história econômica e no prefácio ele fala que governar é escolher. Então, precisamos fazer escolhas. Não dá para querer ter tudo ao mesmo tempo agora.
Nesse cenário de polarização, é viável levar essas discussões adiante?
Eu acho que elas vão acabar sendo impostas pela situação da economia. Eu acredito sempre na solução intermediária. Não vai ser ajuste só pelo lado da despesa, não vai ser ajuste só pelo lado da receita. Agora, hoje, parece que o peso maior está em cima das receitas e eu vejo dificuldade de aumentar a carga tributária de forma importante em termos líquidos. Você pode até redistribuir, mas é difícil aumentar em termos líquidos para gerar o ajuste que eu mencionei antes.
Como o sr. está vendo o cenário daqui para frente com essa deterioração fiscal?
Acabamos de soltar um relatório. Revisamos para cima o PIB deste ano (de 2% para 2,3%), porque a atividade econômica começou mais forte. Houve o efeito de precatórios e do salário mínimo. O salário mínimo tem um impacto fiscal, mas, no curto prazo, gera aumento da demanda do consumo. Outro fator, talvez, mais importante para nossa revisão de PIB foi o crescimento do crédito. Está num ritmo mais forte do que a gente imaginava no ano passado. Mas como a gente também revisou a Selic – deve terminar o ano em 9,75% e, antes, tínhamos 9,25% -, esperamos um crescimento menor no ano que vem, de 1,8%. Não é um cenário de crise, mas também não é um cenário muito exuberante.
A Selic segue no patamar de 9,75% em 2025 também?
Fica. Temos muita incerteza em relação ao ano que vem. Tem incerteza sobre a política monetária dos Estados Unidos, tem a mudança na composição do Banco Central, na presidência. Com tanta incerteza, achamos que, por ora, a projeção mais prudente é de estabilidade. Na medida em que as incertezas forem sendo dirimidas, podemos rever isso para baixo ou para cima.
O juro ainda está alto. O que explica essa alta do crédito?
O juro está alto, mas caiu. O desemprego está baixo. A renda vem crescendo bem, o que significa que a capacidade de pagamento das famílias aumentou. Eu acho que tem mais apetite por parte dos bancos – estou falando do sistema como um todo – para emprestar.
E qual é o cenário para a inflação?
Temos previsão de 3,7% este ano e de 3,6% para o ano que vem. Estamos caminhando lentamente para a meta de 3%. Por que o juro não cai mais rápido? Sempre tem de olhar a projeção de inflação. Se essa projeção de inflação estivesse em 2,7% neste ano e em 2,6% no ano que vem, você poderia ver a queda de juro bem mais intensa. Se eu estivesse projetando uma queda de juros mais intensa com as projeções de inflação que tenho, eu estaria implicitamente assumindo que o Banco Central vai adotar uma postura leniente em relação à inflação. E ele não tem sinalizado isso.
O quanto a transição do Banco Central atrapalha a queda dos juros?
Eu não sei se chega a atrapalhar a queda do juro no curto prazo, mas ela atrapalha a formulação de cenários para médio prazo. No passado distante, eu participei de um grupo de trabalho que estudou como funcionam os comitês de política monetária. E uma das conclusões que chegamos nesse grupo – chefiado pela Janet Yellen (hoje secretária do Tesouro dos EUA) – era que o voto do presidente equivalia a mais ou menos a metade do comitê. Então, a ascendência que o presidente tem sobre o comitê é tamanha que, efetivamente, ela ou ele só precisam de mais um voto para ganhar o debate.
Um nome que seja bem recebido pelo mercado pode fazer essas expectativas de inflação caírem?
Eu acho que ajuda. Não vejo num passe de mágica, algo que um nome, isoladamente, faça as expectativas despencaram para 3%. Mas ajuda e evita também que elas subam. As expectativas para 2025 têm subido. Num primeiro momento, é deter essa deterioração, para depois começar a pensar em queda.
Hoje, o grande favorito para assumir o BC é o Gabriel Galípolo, mas tem uma pesquisa da Quaest que mostra que o mercado prefere o Paulo Picchetti. Como vê o nome do Galípolo?
Não vou fulanizar muito a discussão, mas qualquer pessoa que for colocada no cargo vai ter uma responsabilidade muito clara perante a sociedade, que é entregar a inflação de 3%. Então, se for colocado o diretor Galípolo, ele vai ter essa responsabilidade. E qualquer outro nome vai ter a mesma responsabilidade. E eu acho que vai querer entregar. Não tenho nenhuma evidência até aqui de que a meta será ignorada ou menosprezada. Pode ser que no futuro a gente tenha informações diferentes. Eu acho que a meta para inflação, por ser tão transparente, deixa muito claro quando o Banco Central não está cumprindo. E a pergunta que vem é: por que não está cumprindo? E se a resposta não for convincente, o Banco Central acaba sofrendo uma perda de credibilidade que fica explícita muito rápido e se manifesta em preços de ativos.
E qual é a avaliação da gestão do ministro Haddad?
Eu acho que o ministro está tendo uma luta intensa para conduzir a política fiscal em linha com o arcabouço. E está buscando o ajuste fiscal possível com os instrumentos possíveis. Mas eu acho que não pode colocar tudo isso nos ombros de um só ministério ou de um só ministro ou de um par de ministros. O ajuste que Brasil necessita deveria virar uma política mais ampla, não algo que é apenas de um membro, ainda que ele seja superimportante do governo.
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