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Direito Administrativo, fundo musical?

Será que estamos acomodados fazendo fundos administrativistas barulhentos para cerimônias públicas?

Globo

Submeter ao Direito todas as ações administrativas dos governos? Parece boa ideia: dá mais estabilidade, evita arbítrios, democratiza decisões, protege minorias. Ao menos é o que nós, profissionais do direito administrativo, gostamos de dizer por aí para valorizar o que fazemos.

Será que acreditamos mesmo nisso? Nos esforçamos o bastante para ser real?

Aparências podem enganar. Rumores fortes de juridiquês ecoam todo o tempo nas administrações públicas e nos controles. É fato. Assessores e autoridades preparam textos citando normas, transcrevem decisões judiciais e frases de livros jurídicos, dão opiniões no jargão dos juristas. Quase uma epidemia jurídica. Advogados estão muito presentes em todo tipo de processos administrativos e nos controles, alguns em favor de clientes privados, outros fazendo análises para autoridades públicas. Somos muitos hoje em dia.

Isso garante importância institucional e sucesso prático ao direito administrativo? Bem, nossa atividade profissional envolve bastante, somos chamados e o mercado só faz crescer. Mas isso responde à dúvida sobre a realidade das instituições?

Essas perguntas me transportam ao início da adolescência, quando ia nascendo meu fascínio com a música — um fascínio discreto, só de ouvinte, que mantenho até hoje. Os amigos da época também gostavam das bandas de sucesso. Mas, engraçado, seria justamente a música a nos distinguir e afastar.

O interesse dos meus colegas era por um fundo musical divertido para os dias animados em que descobríamos a vida. Para juntar a turma, natural repetirem todo o tempo os sons da moda. Só isso. Agora que a adolescência passou, fico me indagando se eu e os outros administrativistas teríamos virado uns músicos melancólicos de churrascaria, geradores de ruídos para estimular as pessoas a beber mais.

Será que estamos acomodados fazendo fundos administrativistas barulhentos para cerimônias públicas?

Na adolescência, acabei ficando à margem porque me irritava com fundos musicais. Meu jeito era mais trabalhoso: queria ouvir em silêncio, atento, identificar nuances. E conhecer novos estilos. Queria descobrir mais, questionar, comparar. Isso me fez misturar Pink Floyd e Rolling Stones com Luiz Melodia, Bach, Noel Rosa, Raul Seixas, Beethoven, Carlos Santana, Caymmi, Verdi, Tom Jobim, Oscar Peterson, Bethânia. Na relação com o universo musical, sigo assim até hoje: cético, buscando… e fascinado. E, confesso, implicado com os fundos musicais que atrapalham a conversa e ninguém ouve.

Foi natural para mim trazer as mesmas manias para minha lida com o mundo jurídico. Elas são as responsáveis por meu novo livro, que acaba de sair: “Direito Administrativo para + Céticos” (editora JusPodivm, 2025; 3ª. edição, ampliada, reescrita e muito alterada de um livro anterior).

Comecei com um capítulo diferente em que, para resumir o livro e conectá-lo com o mundo real, fiz do mais realista dos compositores brasileiros, Chico Buarque, meu parceiro involuntário (coitado). Quem conhece bem as canções dele vai se surpreender ao vê-las de mãos dadas com o direito administrativo. Quem conhece pouco, vai descobrir maravilhas.

O livro adota um viés realista para mergulhar nas questões existenciais do direito administrativo. O que se queria que ele fosse? O que ele não é, mas muitos acham que é? Como ele é hoje, em verdade? E no futuro, o que há de ser? Fiz uma radiografia do Brasil, incluindo uma história do tempo presente. Deixei de lado a doutrina estrangeira e apostei tudo nas figuras humanas que fizeram e fazem nosso direito administrativo, resgatando suas vozes, circunstâncias e trajetórias pessoais. Questionei bastante, sobretudo no capítulo “Princípio é preguiça?”, o vício brasileiro de engrolar princípios em textos jurídicos.

Escrevi este livro com espírito musical, fazendo um mergulho intenso, mas curiosamente leve, até divertido, no Brasil e nas suas confusões jurídicas. Algo que ajudou, e penso repetir, foi ter me escondido no Rio de Janeiro, imaginando Villa Lobos passando na calçada e Vinícius de Moraes e Baden Powell fazendo afro-sambas no andar de baixo.

Esta foi minha aposta: abandonar a pompa, a inércia e a repetição no direito administrativo para pagar a promessa de ajudar em algo a sociedade brasileira a ser mais feliz, aberta, democrática e estável, ao invés de me contentar em soar como um fundo musical irrelevante. Afinal, Rita Lee, Chiquinha Gonzaga, Clara Nunes, Dolores Duran, Ivone Lara, Elis Regina, Anastácia, Marisa Monte, Mônica Salmaso, Cida Moreira, Mart’nália, Roberta Sá e tantas outras têm feito exatamente isso por todos nós.

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Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld