Folha
Em colunas recentes, tenho chamado a atenção para os malabarismos orçamentários do governo para driblar a regra fiscal que ele mesmo criou: programa Pé de Meia, Auxílio Gás administrado pela Caixa Econômica, o fundo privado criado pela MP 1.278/24 para financiar investimentos frouxamente associados à questão climática, autonomia financeira para a PPSA, transformação de entidades públicas que nada têm a ver com ciência e tecnologia em instituições de CT&I, o Fundo Clima abastecido por emissão direta de dívida, transferência de fundos orçamentários para o BNDES, criação e capitalização de fundos garantidores.
Todos esses instrumentos, de uma forma ou de outra, permitem despesas que não aparecem na conta do déficit público ou do teto de gastos.
O uso do cachimbo está deixando a boca torta. Até para um caso que seria correto um tratamento orçamentário diferenciado criou-se mais um fundo privado.
No acordo com as vítimas do rompimento da barragem de Mariana, a Samarco pagará, ao longo de 20 anos, R$ 29,8 bilhões à União e R$ 39,7 bilhões aos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Além disso, os três entes repartirão R$ 12 bilhões com um conjunto de municípios, para ações tripartites em saúde.
O acordo estabelece que os montantes pagos aos dois estados “deverão obedecer aos princípios orçamentários”. Mas no caso da União será criado um fundo privado (portanto, fora do Orçamento federal), denominado Fundo Rio Doce, a ser administrado pelo BNDES e regulamentado por decreto, que ainda não foi editado.
Por que nos estados os recursos terão trâmite orçamentário regular e na União serão administrados por um fundo privado extraorçamentário?
Claro que há a preocupação de que o dinheiro da reparação não caia na vala comum da Conta Única do Tesouro Nacional, sujeitando-se a contingenciamentos. Afinal, é dinheiro privado destinado a programas de reparação a dano específico, que deverão ser executados e não podem estar sujeitos à escolha orçamentária entre eles e outros programas.
Não seria difícil aprovar uma lei dando tratamento apartado para esses recursos, que poderiam ser alocados em um fundo dentro do Orçamento, com isenção para fins do limite de despesa do arcabouço. Para o resultado primário, o impacto seria neutro, pois a despesa já teria receita garantida.
O acordo estabelece detalhadamente os programas nos quais o dinheiro será gasto e determina até mesmo qual ministério administrará cada um dos programas. São ações de transferência de renda, reparação à atividade pesqueira, fiscalização de atividade mineradora, entre outras. Claramente atividades da administração pública que deveriam estar no Orçamento.
Cedo ou tarde o dinheiro terá de sair do BNDES e entrar no Orçamento para ser despendido por cada um dos ministérios. Nesse momento, terá de ser criada uma regra de isenção para os limites do arcabouço fiscal. Por que não criá-la de imediato e evitar o uso do fundo privado?
O formato adotado tem um ganhador claro: o BNDES, que amealhará comissão para administrar o fundo e poderá usar os recursos como fonte para suas operações.
Aprovar legislação específica para tratar os recursos dentro do Orçamento talvez demorasse mais, atrasando o pagamento dos honorários advocatícios aos membros da AGU.
Por fim, não posso deixar de registrar que o Judiciário, árbitro da questão, acabou virando parte e levou R$ 1,26 bilhão, para financiar “programas para a mulher” e “apoio a instituições de Justiça”.
Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-mendes/2025/02/ha-heterodoxia-orcamentaria-ate-no-acordo-de-mariana.shtml
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