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‘Soft power’ e Joseph Nye

Estadão

Soft power tornou-se um termo de uso frequente na análise das relações internacionais. Foi cunhado e elaborado por Joseph Nye, recém-falecido aos 88 anos. Nye, destacado professor de Harvard, exerceu funções de responsabilidade diplomática nas Presidências Carter e Clinton. Afirmou-se como influente e criativo estudioso no campo das relações internacionais; suas formulações tiveram peso na teoria e na prática da ação diplomática de diversos países, inclusive o Brasil.

O ponto de partida de Nye foi realçar que a presença e a primazia dos EUA no mundo não se circunscrevem aos recursos de poder militar e econômico do seu hard power – (o poder duro). Transitam também pela força de atração da cultura, das ideias e das instituições: o seu soft power – (o poder brando). Este alicia preferências de outros atores internacionais e tem papel próprio na elaboração da agenda da política internacional, que incide muito especialmente no campo das afinidades relacionadas aos modos de conceber a vida em sociedade.

Hard power soft power operam em dialética de complementariedade. Integram em conjunto o que pode ser qualificado de capital diplomático. Isso se traduz na capacidade de afetar o comportamento de outros Estados, não apenas pela força, mas também pela atração. Zelar pelo soft power dos EUA como componente do alcance do seu capital diplomático foi tema recorrente de Nye.

Por isso, foi crítico da intransitividade de Trump, que, exacerbando o seu unilateralismo decisionista, deixa de lado o papel do soft power, num processo de crescente dilapidação do capital diplomático dos EUA.

Nye evocava a Declaração de Independência dos EUA, que na sua fundamentação expressou “respeito decente pelas opiniões da humanidade”. O respeito pelo sentimento do justo e do injusto da consciência pública mundial é componente da efetividade do soft power. Não é a marca de Trump e de seu gosto pelo hard power.

A reflexão de Nye não se circunscreve àquilo que representa a perda do soft power para a diplomacia americana no atual sistema internacional permeado por tensões de hegemonia e conflitos de concepção sobre como lidar com a pauta da vida internacional. Tem um alcance muito mais amplo, que diz respeito às modalidades da condução da política externa.

Nye sublinha que a força do hard power é um meio para o exercício do poder, mas não é o único. Existe o poder que provém do soft power, que é menos do que comando, mas é mais do que influência. A dinâmica da dicotomia hard power/soft power é inerente à vida política no plano interno dos Estados. Nye inovou apontando que a dicotomia tem papel de relevo mesmo num sistema internacional heterogêneo, assimétrico e descentralizado que opera, com os riscos das armas, na situação limite paz/guerra.

O campo diplomático-estratégico é um campo global unificado pelos seus conflitos, pela técnica e também pelos seus problemas, que insere o mundo na vida dos países e das sociedades.

Daí a interdependência entre os Estados que resulta da porosidade de contextos e situações em que a conduta dos atores e os acontecimentos em diferentes partes do sistema afetam todos. É o caso paradigmático da mudança climática.

Nye aponta que as interdependências são complexas e assimétricas. Elas podem propiciar benefícios para os países, mas também podem gerar custos. Os custos podem gerar sensibilidades ou agravar-se pelas vulnerabilidades econômicas ou de segurança. Os Estados calibram suas respostas levando em conta seus interesses e com base no capital diplomático dos seus recursos de poder (espaço, número, escala, vitalidade da economia, coesão nacional, localização no mundo, gravitação de valores).

Valho-me da reflexão de Nye para destacar a relevância da variável soft power na condução da política externa brasileira. O Brasil é país de escala continental, com fronteiras consolidadas, em paz com seus vizinhos, distante dos focos de tensão historicamente presentes no centro do sistema internacional e sem ameaças à sua independência nacional.

É um país de muitos recursos, mas neles não se inclui o hard power do poder militar. É dotado de respeitável e acumulado capital diplomático. É sensível, mas não vulnerável, como outros, aos desafios dos custos da interdependência. Tem revelado capacidade de interagir construtivamente com todos os atores internacionais e atuar no plano multilateral, articulando consensos em temas globais. Esta capacidade resulta da vis atractiva do seu soft power, não do seu hard power.

A vocação brasileira de projetar influência externa reside, como pontua Rubens Ricupero, no estilo do nosso soft power de negociação, de conciliação, transação e exemplo. É o que nos permite contemplar a “ambição de ser potência de maneira distinta da tradicional” com outro modo de atuação que não é a da diplomacia de combate do hard power. É o que nos vem da herança de Rio Branco e Rui Barbosa e seus sucessores, à qual a elaboração de Nye sobre o alcance do soft power confere adicional coerência intelectual.

Link da publicação: https://www.estadao.com.br/opiniao/celso-lafer/soft-power-e-joseph-nye/

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Sobre o autor

Celso Lafer