Debates precisam ter foco e prioridades, mas também considerar os caminhos jurídicos para implementação
Jota
As discussões sobre a reforma administrativa voltaram a ganhar espaço. Depois do insucesso da PEC 32/2020 no Congresso, o tema retornou à pauta por meio de um grupo de trabalho liderado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que tem reunido parlamentares, especialistas, representantes do governo, da sociedade civil e sindicatos.
Os líderes desse movimento defendem uma reforma ampla e estrutural – quase uma miragem, já que, nos últimos anos, ao contrário das reformas tributária e previdenciária, o setor de recursos humanos do Estado não conseguiu avançar com mudanças desse porte.
A atual proposta, cuja formulação normativa ainda não é conhecida, parece ter quatro frentes: estratégia; governança e gestão transformação digital; profissionalização do serviço público e combate a privilégios. O cardápio é bastante amplo, abrangendo desde restrições às férias de 60 dias para magistrados, difíceis de mexer, até a criação de um sistema de avaliação de servidores, aguardado há tempos, e regras sobre teletrabalho, tema que vem movimentando discussões recentes, inclusive no TCU.
Para essa ambição se concretizar, será preciso fazer escolhas – de foco e também sobre caminho jurídico. A reforma vai passar pela Constituição ou será implementada por normas infraconstitucionais? E quais entes serão atingidos pelas mudanças?
A atenção às alternativas normativas de reformas é o foco de boa parte dos debates da coluna Função Pública, parceria da Sociedade Brasileira de Direito Público (Sbdp) e do Núcleo Público da FGV Direito SP com o JOTA. A seguir, para contribuir, apresentamos algumas questões-chave sobre essas escolhas.
Será útil uma reforma administrativa que coloque mais normas na Constituição?
Por enquanto, há o anúncio de três possíveis formatos: proposta de emenda à Constituição, repetindo a estratégia da PEC 32, projeto de lei complementar e projeto de lei ordinária.
A experiência mostra, porém, que apostar em nova PEC não é boa ideia. Além de exigir um maior custo político para aprovação, mudanças constitucionais em matéria de RH do Estado dificilmente têm efeitos práticos imediatos.
Como lembrou Jacintho Arruda Câmara, a emenda constitucional 19, de 1998, do governo FHC, é bom exemplo. Ela buscou implantar a administração gerencial, voltada a resultados, e acabou sendo mais lembrada pela introdução de princípios de pouco efeito prático do que pelo restante das medidas. Mas a emenda também tentou fazer os concursos públicos menos formais, flexibilizar a estabilidade dos servidores, permitindo a dispensa de quem apresentasse desempenho insatisfatório, limitar salários acima de um teto remuneratório e criar instrumentos de avaliação e desempenho.
No papel, parecia um marco, mas, na prática, pouco avançou. Mais de duas décadas depois, a lei complementar sobre avaliação de desempenho dos servidores nunca saiu do papel, e o teto remuneratório virou mais símbolo do que regra – os supersalários seguem firmes, por conta das indenizações sem controle, e combatê-los virou uma saga sem previsão clara de desfecho.
Ao longo do tempo, a Constituição foi se enchendo ainda mais de emendas que acabaram refletindo interesses de grupos específicos, como mostraram diversos autores, incluindo Rogério Arantes e Cláudio Couto. Por isso, erro que não se deveria repetir é usar emendas para inflar ainda mais o texto constitucional com regras sobre servidores.
E se a reforma fizer o contrário – tirar coisas da Constituição?
Aqui, a perspectiva muda. Uma alternativa viável é corrigir excessos constitucionais, retirando da Constituição regras, ou parte delas, que não precisam ter status constitucional, deixando que sejam tratadas em nível infralegal (por exemplo, normas sobre servidores públicos).
Uma ideia é que as regras antigas continuariam válidas até que a alteração ocorresse por meio de lei complementar (maioria absoluta do Congresso), garantindo que direitos legítimos não fossem prejudicados.
Essa estratégia de desconstitucionalização permite negociações graduais: primeiro, sobre a retirada de normas da Constituição, mantendo-as em nível legal; depois, sobre os possíveis ajustes por meio de lei.
E no plano legal?
Se a decisão for não levar a reforma para a Constituição, há ganhos evidentes: mudanças infraconstitucionais tendem a ser mais simples de aprovar, com menor custo político, mais rápidas de implementar e com mais abertura à avaliação periódica e revisão.
Surge, porém, uma questão importante: essas reformas alcançarão todos os níveis federativos ou serão restritas a uma esfera específica?
A resposta dependerá do tipo de reforma que se pretende implementar, de sua abrangência e do grau de detalhamento desejado, seja em regras mais gerais ou mais específicas.
Uma primeira situação é considerar que reformas mais estruturantes, como a Proposta de Reforma do RH do Estado, que prioriza a redução do número de carreiras, a implantação de planejamento da força de trabalho e, em especial, a adoção de sistema unificado de avaliação de desempenho dos servidores, seriam iniciadas no âmbito da administração pública federal. A partir daí, poderiam servir de referência para estados, Distrito Federal e municípios.
Mas e se a meta for mexer com toda a máquina pública — União, estados e municípios –de uma só vez? Nesse caso, o desafio é maior. Como lembra Vera Monteiro, estamos falando de 27 estados e 5.568 municípios, com realidades muito distintas.
Experiências recentes mostram que é viável avançar. Uma alternativa, dependendo do objeto da reforma, é criar leis de abrangência nacional com normas gerais, universais na medida do possível, mas respeitando a autonomia de cada ente nas matérias de sua competência.
A Lei Nacional de Modernização dos Concursos Públicos (Lei 14.965, de 2024), estabeleceu, em caráter nacional, normas mínimas necessárias para, preservando as experiências de sucesso já em andamento, assegurar a efetividade nacional dos concursos públicos, contribuindo para sua modernização.
A justificativa para isso está na Constituição, que prevê competência concorrente da União, dos estados e do Distrito Federal para legislar sobre “procedimentos em matéria processual” (art. 24, XI). Cabe à União editar normas gerais, enquanto os Estados exercem competência suplementar. E o concurso público é, em essência, um procedimento administrativo, como confirmado pela literatura e pela Lei Federal de Processo Administrativo (Lei 9.784/1999).
Outro exemplo é o Projeto de Lei Geral dos Temporários (PL 3069, de 2025), que propôs, também em âmbito nacional, regime mínimo comum para contratações por tempo determinado e obteve apoio parlamentar. A estratégia consistiu em usar a competência da União para criar normas gerais sobre contratação pública “em todas as modalidades” (art. 22, XXVII, da Constituição), sem inviabilizar soluções locais legítimas. Ou seja, preservando a competência de cada ente para garantir outros direitos aos agentes públicos, inclusive de natureza remuneratória.
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No fim das contas, há consenso de que o país precisa de reformas capazes de tornar o Estado mais eficiente e de garantir serviços públicos de qualidade. A experiência, porém, também deixa um alerta: sem foco claro e sem o caminho jurídico adequado, qualquer reforma corre o risco de se tornar mais uma promessa sem andamento, sem resposta.
Link da publicação: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/funcao-publica/nova-reforma-administrativa-por-que-as-alternativas-normativas-importam
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