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É normal o sistema de Justiça levar 40 anos para punir improbidades?

Globo

Cautelar de ministro do STF suspende regra sobre prescrição em ações de improbidade em meio a esforço do CNJ para incentivar celeridade nesses casos


Decisão cautelar de um só ministro do Supremo Tribunal Federal acaba de suspender uma regra sobre prescrição nas ações de improbidade. Confesso que não entendi qual seria o argumento constitucional para isso. Também fiquei surpreso pela contradição com o enorme esforço do Conselho Nacional de Justiça para incentivar a celeridade nessas ações.

Segundo a lei atual (na redação que ganhou em 2021), o autor de uma ação de improbidade (normalmente os Ministérios Públicos) tem até oito anos para iniciá-la (o prazo se conta a partir do fato suspeito). Depois, haverá prescrição e a ação se inviabilizará.

Mas não foi nisso (na prescrição antecedente) que a cautelar do STF mexeu, e sim nas quatro hipóteses de prescrição que podem ocorrer após o começo da ação de improbidade: as prescrições intercorrentes em cada fase do processo.

O que diz a regra legal em que a cautelar mexeu? Que, depois de iniciada a ação, cada instância judicial terá até quatro anos para fazer seu trabalho. Se, na primeira instância, a sentença não sair no prazo, a ação será arquivada, inviabilizada pela prescrição intercorrente. Quatro anos não são pouco: é a mesma duração dos mandatos dos prefeitos – que, como os juízes, se equilibram entre muitas demandas e poucos recursos.

Se, antes dos quatro anos, houver condenação por improbidade, a ação seguirá para julgar os recursos. Aí, cada instância judicial que estiver acima terá também até quatro anos para trabalhar (começando pelos tribunais inferiores, depois o STJ e, por fim, o STF). Se qualquer delas se exceder e não julgar os recursos, a prescrição intercorrente vai ocorrer e a ação vai para o arquivo.

Portanto, segundo a lei, são ao todo quase 24 anos (até oito anos antes da ação, quatro anos na primeira instância, mais quatro na segunda instância, mais quatro no STJ e mais quatro no STF).

A cautelar do STF criticou uma diferença da lei quanto ao prazo para a hipótese de absolvição logo na primeira instância, da qual o Ministério Público pode recorrer para a segunda instância. A reversão tem de vir antes do quarto aniversário do início da ação (e não da data da sentença, como nos demais casos). Se o primeiro juiz tiver gasto três anos, o tribunal vai ter de andar rápido e julgar em um ano.

Concordo com o ministro Alexandre de Moraes, autor da cautelar, que a regra não é a ideal, porque a absolvição na primeira instância pode consumir quase todo o prazo, deixando uns poucos dias para a segunda instância, o que é muito inconveniente. Mas o jeito de melhorar isso seria o STF, que tem iniciativa constitucional para projetos de lei, propor um prazo melhor (dois anos, por exemplo, estariam de bom tamanho).

De qualquer modo, é exagero chamar o ruim de inconstitucional. Afinal, trata-se de proteger alguém que já foi inocentado na primeira instância. Prestigiar o julgamento dos juízes da linha de frente faz sentido.

Mas, engraçado, a cautelar criticou essa regra específica, mas deixou-a passar. É que a cautelar se concentrou no conjunto de prazos, que achou apertados demais. Para a cautelar, cada instância deveria ter até oito anos. Fiquei espantado. Um tribunal de Justiça, com todos os meios que possui, precisa de oito anos (dois mandatos de um governador reeleito) para resolver um único caso?

Resumindo, na visão da cautelar, o prazo total para conseguir punir ímprobos (ou livrar inocentes das acusações erradas) precisa ser de quase 40 anos (contado do dia do fato suspeito até a decisão final do STF). Caramba. É o mesmo tempo que nosso país viveu desde a conquista da democracia, em 1985.

Quem for ler a cautelar, encontrará dois argumentos básicos para isso.

O primeiro: se os quatro anos forem aplicados, milhares de ações serão arquivadas agora em outubro de 2025 e “muitos réus seriam beneficiados pela prescrição intercorrente”.

Não entendi.

A função das prescrições é exatamente livrar os réus quando o Estado demora demais, além de cobrar celeridade da Justiça. Diz a Constituição de 1988: os réus têm direito à “duração razoável do processo” e aos “meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5º, LXXVIII).

A cautelar, porém, parece estar quebrando o galho do sistema de Justiça, não dos réus.

O Conselho Nacional de Justiça estava bem atento à cobrança de celeridade feita pela lei de improbidade em 2021. Desde 2013 (muito antes da lei, portanto), impôs metas para priorizar essas ações. Para este ano de 2025, a detalhada meta 4 [1] trata delas.

O CNJ, em seu trabalho constante de monitoramento e pressão, alertou em fevereiro de 2025 que ainda havia 36.268 processos a julgar [2] antes de outubro (quando, pela primeira vez, expirará o prazo imposto para a Justiça pela nova lei em 2021).

Em início de maio de 2025, o CNJ informou que o STJ já havia cumprido 97,1% da meta, a Justiça Federal, 71,12%, e as Justiças estaduais, 66,3%. Mas faltavam ainda sete meses para zerar a meta.

A cautelar não foi capaz de esclarecer qual percentual do estoque de ações propostas ou com recursos há quatro anos já foi julgado nesse período. Limitou-se a, para impressionar, citar números de ações, fornecidos pelos Ministérios Públicos, de estados escolhidos, que poderiam prescrever agora em outubro (São Paulo: 1.889; Minas Gerais: 3.188; Rio Grande do Sul: 1.022; Rio de Janeiro: 1.966).

Não é algo que impressiona, considerando o número total de ações envolvidas no quadriênio. Também não ficou claro de que mês é este dado. Também não esclareceu por que não citou nenhum dado recente do CNJ.

Mas impressiona que venha de uma decisão do STF a sabotagem do enorme esforço do CNJ e de toda a Justiça brasileira para cumprir a meta. Quer dizer que era tudo faz de conta? A meta era só miragem, já que, no último momento, o STF quebraria o galho de quem não conseguiu cumpri-la?

Qual norma impõe, como baliza das prescrições, o tempo real que a parte mais lenta da Justiça costuma gastar para julgar? Prescrições são para proteger uma parte dos membros dos Ministérios Públicos e da Justiça das cobranças por eficiência, bem como das explicações ou consequências por não conseguir cumpri-las?

Para a Constituição, a lei deve ter regras de prescrição justamente para impor celeridade à Justiça, não para se acomodar à lentidão de algumas partes dela. Prescrições, em qualquer lugar do mundo, são o preço a pagar para a máquina pública se mexer.

De acordo com a cautelar, levantamentos feitos pelo CNJ em 2015 (há quase dez anos, pouco depois de as metas do CNJ terem começado a tratar do assunto) indicavam que, na média, os julgamentos das ações de improbidade em primeira instância saiam em pouco mais de quatro anos (do começo ao fim, isto é, até o trânsito em julgado, as ações duravam pouco mais de cinco anos, em média).

Não dá para entender o raciocínio da cautelar ao mencionar esses dados.

Se o trânsito em julgado costumava vir em cinco anos, com base em que, tantos anos depois, com todo o trabalho do CNJ para reduzir ainda mais o tempo de tramitação, a cautelar reivindica para o sistema de Justiça um prazo incrivelmente maior, de 32 anos (oito anos para cada uma das quatro instâncias)?

Quer dizer que a lei de improbidade deveria ter estimulado uma lentidão maior?

Se, bem antes da lei e da atuação do CNJ, os julgamentos de primeira instância saiam em pouco mais de quatro anos (para ser exato: 4,24 anos, em média), o que há de absurdo em, com uma regra de prescrição, a lei de 2021 ter cobrado da Justiça um ganho de eficiência de cerca de 10% no tempo médio para julgar?

Passados quatro anos desde que a regra legal mudou, o sistema de Justiça não conseguiu aumentar em nada sua eficiência? Os números sugerem o contrário. Porque, então, a cautelar se insurgiu contra as cobranças do legislador? O que há de inconstitucional em exigir um aumento de 10% na eficiência média?

Mais lentidão é melhor contra a impunidade? É ruim incentivar a eficiência judicial?

O segundo argumento da cautelar foi que os tais quatro anos em cada instância violariam normas internacionais aceitas pelo país.

Tais normas estão transcritas na decisão e o equívoco é fácil de perceber. Elas tratam apenas de prescrição antecedente (uma menciona o prazo anterior à “abertura de processo sobre o delito” e outra o prazo “para iniciar processos”). Nem uma palavra sobre prescrição intercorrente.

Além disso, as normas internacionais nada dizem de objetivo quanto a prazos. Uma se refere a “período de tempo adequado” e a outra a prazo “amplo”. Com base em que se pode dizer que os quatro anos são inadequados ou curtos demais?

Em uma discussão livre, qualquer um de nós pode, claro, chutar o prazo que preferir. Mas o Supremo Tribunal Federal não pode fazer isso.

Inclusive porque, em decisões envolvendo o Tribunal de Contas da União (que julga processos punitivos ou de ressarcimento bem complexos, e para os quais não há lei específica sobre prescrição intercorrente), o STF mandou aplicar uma lei geral feita para a administração pública.

Sabem que prazos essa lei previu para a prescrição intercorrente, e o STF mandou o TCU observar? Três anos (se o processo ficar emperrado, sem qualquer movimentação) e cinco anos (para os demais casos). Para quem gosta de médias, dá quatro anos, justamente o prazo que a cautelar recente considerou bem ruim.

Parece incoerente que, agora, venha do mesmo STF a reivindicação por 40 anos para o sistema de Justiça investigar e decidir em definitivo se tem gente cometendo improbidade por aí.

Especialmente porque, no caso recente de tentativa de golpe de Estado e outros crimes, envolvendo um ex-presidente e vários réus, o sistema de Justiça está sendo bem rápido: a trama começou há quatro anos e, proposta a ação no começo de 2025, o STF não precisou nem de um ano para julgá-las.

* Carlos Ari Sundfeld é professor titular da FGV Direito SP

NOTAS
[1] Ver: https:/www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/metas-nacionais-aprovadas-no-18o-enpj-v-8.pdf
[2] Ver: https://www.cnj.jus.br/judiciario-tem-oito-meses-para-julgar-36-268-acoes-por-improbidade-administrativa/

Link da publicação: https://oglobo-globo-com.cdn.ampproject.org/c/s/oglobo.globo.com/google/amp/blogs/fumus-boni-iuris/post/2025/09/artigo-e-normal-o-sistema-de-justica-levar-40-anos-para-punir-improbidades.ghtml

As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.


Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld