Boa parte da expansão recente do crime organizado decorre de governos fracos, capturados pela corrupção
Valor
O avanço do crime organizado exige instituições capazes de enfrentá-lo com eficiência. Como a corrupção, sua aliada, é um problema complexo, em rápida expansão no mundo, corroendo o tecido econômico, social e político do país, bloqueando seu desenvolvimento.
Três pilares são necessários para esse enfrentamento. Primeiro, leis que elevem o custo do crime e reduzam a impunidade, inspiradas no que há de melhor na experiência internacional e doméstica. Segundo, oferta eficaz de serviços públicos — segurança, saúde, educação, infraestrutura — retirando dos criminosos a “vantagem de substituir o Estado” em troca da submissão dos cidadãos. Terceiro, participação ativa da sociedade civil na defesa das propostas que contrariam os interesses da criminalidade, hoje infiltrada nos três Poderes e em vários setores da economia. Além disso, dada sua internacionalização, o crime exige cooperação estreita entre países e regras globais para a troca de informações e o rastreamento de recursos ilícitos.
Boa parte da expansão recente do crime organizado decorre de governos fracos, capturados pela corrupção, e do uso de inovações tecnológicas sem regulação adequada, como as criptomoedas e outros meios eletrônicos de comunicação e pagamentos não rastreáveis.
Relatório recente do Banco Mundial (1) mostra que a violência do crime organizado na América Latina e Caribe (ALC) é a maior do mundo. Com apenas 9% da população global, a região concentra um terço dos homicídios. As taxas são mais elevadas que em países com nível de renda per capita semelhante, e cresceram nos últimos anos. Em 2023, doze países da ALC estavam entre os 50 primeiros listados no Índice de Criminalidade da Iniciativa Global Contra o Crime Organizado (GI-TOC), que também revela o domínio da região no comércio mundial de cocaína: com 17 países entre os 20 primeiros. O Brasil, com 3% da população mundial, responde por 10% das mortes violentas globais (2), ocupando o 18 lugar no ranking de violência entre 119 países.
Além da insegurança sofrida pelos cidadãos, vítimas de todo tipo de violência, o crime organizado corrói as instituições e aprisiona em um círculo vicioso: aproveita-se da fragilidade do Estado e, ao se disseminar, o enfraquece ainda mais, deteriorando a qualidade dos serviços públicos e o desenvolvimento econômico.
Hoje, quase cem organizações criminosas operam no Brasil, segundo o Ministério da Justiça. As mais organizadas são o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Este último domina fronteiras e portos, como o de Santos, por onde passam mais de 10 mil contêineres por dia, viabilizando sobretudo o tráfico de cocaína. Atua tanto em áreas remotas, como a Amazônia, quanto em grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo. Lava dinheiro na economia formal, principalmente em setores que lidam com dinheiro vivo, que empregam mão de obra irregular, e/ou têm estruturas societárias opacas. Está presente em pelo menos 13 setores: combustíveis, agências de carros, imóveis, construção civil, transporte público, casas de câmbio, finanças, criptomoedas, empresas de apostas e jogos de azar, atividades ligadas ao futebol, mineração, ONG’s, igrejas (3).
O PCC se internacionalizou, e está em quase 30 países. Nos últimos anos, firmou aliança com uma das três máfias mais poderosas da Itália, a ‘Ndrangheta calabresa, entrando pela de forma direta no tráfico internacional de cocaína, multiplicando seus ganhos. Com isso, mudou o patamar e a escala de sua atuação, e passou a preencher os requisitos que, segundo a legislação italiana, o caracterizariam não mais como uma “organização criminosa”, mas como uma “associação mafiosa”.
Essa distinção permitiu a criação das leis antimáfia, uma série de notáveis inovações adotadas na Itália nos últimos 40 anos, visando enfrentar as máfias locais. Criaram um trilho paralelo ao sistema judicial tradicional para facilitar e acelerar inquéritos e ritos judiciais contra membros das máfias. As penas são mais severas, incluindo prisão perpétua para os líderes mafiosos. Foram estabelecidas regras rígidas para presídios de segurança máxima (“carcere duro”), regulamentadas colaboração premiada, e introduzido o confisco preventivo de bens. Decisiva foi a criação, em 1991, da “Direzione Investigativa Antimafia” (DIA), em 1991, com atuação preventiva e repressiva de crimes mafiosos em todo o país.
No Brasil houve avanços. Foram adotadas regras semelhantes à dos “carcere duro” para presídios de segurança máxima, na gestão do então ministro da Justiça Sergio Moro. Incluiu-se no Código Penal o confisco alargado do patrimônio incompatível com os rendimentos comprovados, invertendo o ônus da prova. Mais recentemente, após a Operação Carbono Oculto, começou a ser corrigida a assimetria regulatória entre bancos tradicionais e fintechs.
Essas medidas, embora positivas, não contiveram a expansão do crime organizado, atestando a necessidade de uma abordagem sistêmica. Como a criminalidade já se infiltrou no sistema econômico e político, a participação da sociedade civil é imprescindível para levar adiante a agenda de modernização institucional na prevenção e combate ao crime.
Também é indispensável aumentar a eficiência do gasto público. Sem segurança, saúde, educação, infraestrutura os cidadãos ficam à mercê de grupos criminosos para supri-los. Políticas econômicas devem voltar a se concentrar em destravar os gargalos que têm nos condenado ao baixo crescimento, e não em programas eleitoreiros que distribuem uma riqueza inexistente, sacando da conta das gerações futuras através do elevado endividamento público.
Aplica-se ao Brasil o alerta que Gratteri e Nicaso (4) fazem para a Itália: “A força das máfias é diretamente proporcional à fraqueza da política. Precisamos não só de políticos honestos, mas também preparados. Muita gente em funções inadequadas só tem gerado danos com reformas inúteis e estratégias discutíveis.” Só com o esforço contínuo de cada um de nós poderá abrir espaço para um futuro melhor.
- Latin America and the Caribbean Economic Review, April 2025. https://hdl.handle.net/10986/42889.
- https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/07/18/mortes-violentas-caem-mas-brasil-e-o-18o-pais-com-maior-indice-de-letalidade-do-mundo-aponta-anuario-de-seguranca.ghtml
- Lista apresentada pelo promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo (“OESP”, 03/07/25)
- “Una Cosa sola – come le mafie si sono integrate al potere” – Nicola Gratteri e Antonio Nicaso –Mondadori – 2024.
Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/como-enfrentar-organizacoes-mafiosas.ghtml
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