Marcos Mendes e Marcos Lisboa
Brazil Journal
A Câmara dos Deputados aprovou em votação-relâmpago a PEC 14/2021, que concede privilégios corporativos e benefícios previdenciários aos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Controle de Endemias (ACE).
A medida vai na contramão da reforma da previdência de 2019, e vai aumentar o problema fiscal severamente.
Os dois turnos de votação da PEC foram feitos em um só dia. A avaliação majoritária na imprensa foi de que a oposição escolheu uma das múltiplas bombas que o Congresso mantém na prateleira para dar um susto no governo.
Antes fosse só isso.
O problema parece muito mais grave. O episódio é mais um exemplo de como os grupos de pressão bem-organizados têm livre trânsito no Congresso.
Os parlamentares conduzem suas campanhas eleitorais em bases individuais. Os partidos políticos não têm linhas programáticas claras para determinar o voto de seus membros. Tampouco têm incentivos a cooperar com o Executivo na busca do equilíbrio fiscal.
Este processo se agrava quando o próprio Executivo cria mecanismos criativos para burlar as regras e expandir os gastos públicos, ignorando a restrição orçamentária.
Ficou bem mais fácil para grupos de pressão com poder de influência eleitoral viabilizar suas demandas dentro do Congresso. Parlamentares e partidos não têm incentivos para barrar demandas de grupos que podem lhes prejudicar nas próximas eleições.
O Brasil tem entre 350 mil e 400 mil ACS e ACE, distribuídos por quase todos os municípios do País. São indivíduos que entram cotidianamente nas residências da população de baixa renda e oferecem orientação em saúde básica, prevenção de doenças, encaminhamento de casos mais graves para a rede assistencial. Têm credibilidade e legitimidade junto ao eleitorado.
Ao mesmo tempo, conseguiram formar uma mobilização classista forte que, ao longo dos últimos vinte anos, foi capaz de aprovar nada menos que três emendas constitucionais (sem contar a PEC 14/2021, ora em discussão).
Deputado e senador que votar contra este grupo está arrumando sarna para se coçar. Governadores e prefeitos até poderiam resistir, caso tivessem que pagar a conta nas suas folhas de pagamento.
Só que as PECs anteriores e a atual empurram a conta para o governo federal. O benefício é local, mas a conta adicional será paga pela União.
O recrutamento de pessoas em comunidades de baixa renda para atuarem como agentes comunitários de saúde começou no Ceará na década de 1980, e se mostrou uma forma eficaz e de baixo custo de introduzir procedimentos básicos de prevenção e acompanhamento em saúde.
O sucesso fez a fórmula ganhar escala nacional, inicialmente como Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde, hoje transformado na Estratégia de Saúde da Família, uma das ações centrais do SUS.
Naércio Menezes e Bruno Komatsu fazem uma revisão dos estudos que avaliam esta política pública e apontam resultados de sucesso, como reduções significativas em mortalidade infantil e materna, redução de nascimentos com baixo peso e de morbidade em geral.
Os ACS e ACE são parte integrante deste sucesso. Isso, contudo, não deveria ser salvo conduto para tratamento privilegiado.
Infelizmente, isso tem se tornado a norma: projetos de lei ou Emendas Constitucionais vão adicionando privilégios aos muitos lobbies.
O recrutamento nas fases iniciais dos programas de agentes comunitários se fazia na vizinhança da área atendida, prioritariamente mulheres. A função era exercida em espírito de voluntariado, e exigia-se apenas a escolaridade básica. O pagamento era feito sob a forma de bolsa e vínculos temporários, sem relação trabalhista e formalidades como horários fixos.
A primeira emenda constitucional obtida pela corporação (EC 51/2006) transformou a ocupação em emprego formal, com contratação obrigatória pelos estados e municípios. Determinou que deveria haver um processo seletivo simplificado, de prova e títulos. Aqueles que já exerciam a função foram contratados sem a necessidade de processo seletivo. Foi vedada a terceirização da função. A Lei 11.350/2006, que regulamentou a emenda constitucional, estabeleceu o regime de trabalho pela CLT.
Nessa fase, já aparecia a prioridade aos interesses corporativos (reserva de mercado e restrição às formas de contratação) em possível prejuízo dos beneficiários finais do programa, que pela restrição poderiam ter menos agentes a atendê-los.
A segunda emenda constitucional converteu os novos contratados em funcionários públicos, determinou a fixação de um piso salarial, plano de carreira e regulamentação das atividades. Também determinou que a União deveria dar ajuda financeira aos estados e municípios para arcar com o aumento de custos. A Lei 12.994/2014 regulamentou a emenda, fixando o valor do piso salarial, estabelecendo jornada de trabalho de 40 horas semanais e definindo os valores de ajuda financeira da União.Em 2016, a Lei 13.342/2016 criou o pagamento de adicional de insalubridade para alguns casos. Em 2018, a Lei 13.595, introduziu o pagamento de vale-transporte e definiu como “essencial e obrigatória” a presença de ACS e ACE nas equipes de atendimento.
A terceira emenda constitucional (EC 120/2022) fixou o piso salarial dos agentes em dois salários-mínimos. Este valor passou a ser pago integralmente pela União. Também estabeleceu que cabe aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer “outros consectários e vantagens, incentivos, auxílios, gratificações e indenizações, a fim de valorizar o trabalho desses profissionais”.
A mesma emenda generalizou o pagamento de adicional de insalubridade e criou o direito à “aposentadoria especial”, sem defini-la.
Por fim, excluiu o valor das remunerações dos ACS e ACE do cômputo da despesa de pessoal para fins de limites da Lei de Responsabilidade Fiscal: uma emenda constitucional interferindo em critérios de contabilidade! Isso reduzia ainda mais a resistência de governadores e prefeitos aos benefícios concedidos à categoria, pois eles deixavam de ser empecilho à aprovação formal de suas contas.
Chegamos, finalmente, à PEC 14/2021, que é a mais arrojada de todas em termos de criação de privilégios em relação às demais carreiras públicas.
Ela fixa condições especiais de aposentadoria – contrariando parâmetros centrais da reforma da previdência de 2019 – incluindo: 5 anos a menos na idade mínima de aposentadoria, em relação à regra geral, para quem tiver 25 anos de contribuição; tempo de afastamento para atividade classista contando como tempo de exercício efetivo, o que revela a preocupação em proteger as lideranças sindicais; e integralidade e paridade, inclusive no pagamento de aposentadoria por invalidez, incluindo vantagens pessoais e adicionais de caráter permanente, o que diverge da regra geral, que impõe redutor ao valor da aposentadoria.
O custo disso tudo vai, mais uma vez, para a União.
A PEC contém, adicionalmente, medidas de “blindagem” das carreiras, que passam a ser classificadas como “exclusivas de Estado, essenciais ao SUS, obrigatórias e permanentes.”
A criatividade não termina, tornando constitucional o que estava em algumas leis, como a vedação à terceirização, o status de servidores em cargo de provimento efetivo no regime jurídico de servidores. Também autoriza a incorporação ao serviço público dos agentes que ainda estejam trabalhando como temporários ou CLT, sem necessidade de concurso.
A base sindical pode ser ampliada, porque os mesmos benefícios se estendem aos “agentes indígenas de saneamento” e aos “agentes indígenas de saúde”.
Uma atividade voluntária e comunitária foi transformada em emprego público, com sindicalismo ativo na busca de privilégios em relação a outras carreiras. Sua força não encontra resistência no processo político-decisório do Congresso.
Muito provavelmente os privilégios e garantias criarão incentivos perversos para a qualidade ao atendimento final da população: funcionários públicos estáveis, esperando a aposentadoria garantida, gastando muito tempo com viagens a Brasília para lotar o plenário da Câmara terão menos tempo para cuidar da comunidade.
Este é apenas um caso. Poderíamos substituir os agentes comunitários por associações do setor de energia, por empresas de apostas online, pelo agronegócio ou qualquer outra associação sindical de servidores públicos.
Um novo governo que tenha intenção de fazer ajuste fiscal, e limitar o pipocar de pautas bombas e privilégios precisará ter muito mais do que boas intenções. Precisará de pulso forte para propor uma pauta de ajuste a um Congresso inapetente e permeável às demandas por privilégios.
Precisará, antes de tudo, ser mais coerente e íntegro, evitando pedir mais impostos e comedimento nas decisões de gasto do Legislativo enquanto expande discricionariamente seus próprios gastos.
As emendas parlamentares devem ser avaliadas. Isso vale para as demais políticas públicas do Executivo. Análise de custo-benefício e definição de prioridades deveria ser o começo de qualquer gestão.
Não será uma agenda fácil. Romper as moedas de troca que se tornaram usuais nas últimas duas décadas. Resgatar os limites de cada poder e respeitar regras, como as que regulam a remuneração de servidores. Garantir tratamento isonômico para os diversos setores. Evitar franjas fiscais para empresas que têm acesso a gabinetes.
Os desvios são imensos. Os desafios tiram o fôlego.
Essa será a agenda da boa política, que impõe limites e cria critérios transparentes de avaliação de resultados, prestando contas à população. Pode ser urgente, mas não será fácil.
Link da publicação: https://braziljournal.com/opiniao-o-sucesso-do-lobby-dos-agentes-de-saude-e-uma-aula-de-brasil/
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