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Corrida do ouro

Turbulência geopolítica deve continuar a alimentar a demanda por ouro no curto prazo

Valor

Os livros de James Bond em geral mostram paisagens exóticas, ambientes luxuosos, vilões tenebrosos e grandiloquentes. Puro entretenimento mid-century. Exceto por ocasionais referências a custos de hospedagem e refeição nos melhores hotéis da Europa à época, o conteúdo econômico é limitado. Há uma grande exceção: Goldfinger, de 1959. Nessa história, o vilão tem, como de hábito, um plano diabólico: tornar radioativas as reservas de ouro dos EUA, guardadas em Forte Knox, de forma a valorizar o seu próprio estoque. O plano de Goldfinger era um ataque frontal ao regime financeiro mundial, calcado nas decisões tomadas na conferência de Bretton Woods, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Como de costume, Bond frustra, no último momento, os planos de Goldfinger — a história ilustra o papel do metal no sistema financeiro, e na cultura, durante boa parte do século passado.

Nesse regime, as economias tinham suas moedas com paridades fixas (mas ajustáveis) em relação ao dólar, que, por sua vez, tinha uma relação fixa com o ouro, ao preço de US$ 35 por onça (cerca de 31 gramas). Não existia mais a conversibilidade direta entre moedas nacionais e ouro, característica do padrão-ouro clássico, pré-1914, mas os bancos centrais tinham a prerrogativa de trocar suas reservas em dólares por ouro, à paridade de 1/35.

Depois de um longo e tumultuado declínio, cuja análise e descrição demandariam muitas colunas, o regime de Bretton Woods acabou sendo abandonado entre 1971 e 1973, com uma desvalorização do dólar em relação ao ouro (e as demais divisas), e a posterior flutuação das moedas. Finalmente, o ouro foi desmonetizado formalmente em 1976 — o último país a manter um elo legal entre sua moeda e o ouro foi a Suíça, o que foi descontinuado na virada do século.

Desde então, o ouro tem sido negociado livremente nos mercados internacionais, mormente Londres (spot, físico) e Nova York (futuros). Outros mercados regionais importantes se encontram em Xangai, Dubai e diversas cidades na Índia — em especial Mumbai.

O metal seguiu e segue sendo visto como um ativo que oferece proteção contra a inflação das moedas fiduciárias — que possuem oferta teoricamente ilimitada. Em particular, a piora na dinâmica fiscal nos países desenvolvidos e principalmente dos EUA , com início em 2017 e acentuada no pós-pandemia, tem sido um catalisador da demanda pelo ouro. Além disso, o ouro tem sido historicamente o ativo de preferência para oferecer proteção contra riscos geopolíticos.

O que mudou, nos últimos anos, foi a relação entre preço do ouro e os ativos americanos. Até 2022, o ouro tendia a se valorizar quando as taxas de juros reais dos títulos do governo dos EUA de 10 anos (o ativo financeiro mais líquido do mundo) declinavam, e a depreciar quando os retornos reais deles subiam, dado que estoques de ouro não pagam juros. A correlação entre o preço do ouro e o dólar era usualmente positiva com o aumento de aversão global ao risco valorizando ambos, mas mais recentemente é possível observar uma diminuição e até uma inversão dessa correlação, como sugerido pela maior percepção de risco geopolítico e econômico vindo dos Estados Unidos.

Sem entrar no mérito da decisão de aplicar sanções impostas pelos EUA e Europa às reservas russas detidas na forma de ativos financeiros, na esteira do conflito na Ucrânia, cabe observar que houve consequências provavelmente não contempladas. A mais importante foi induzir bancos centrais a aumentarem as compras de ouro físico. Isto porque estoques do metal, dependendo de onde sejam localizados, não podem ser bloqueados.

Estimativas recentes sugerem que 41% das reservas internacionais são denominadas em dólares, 27% em ouro, 16% em euros, 4% em libras, 4% em ienes e 2% em renminbis, e 7% em outros ativos. Em 2021 as parcelas eram: 51% em dólares, 13% em ouro, 18% em euros, 4% em libras, 5% em ienes, 2% em renminbis e 7% em outras divisas. O aumento da fatia das reservas internacionais em ouro ocorreu claramente às expensas do dólar e, em menor medida, ao euro — não coincidentemente, as moedas dos países que lideraram a imposição de sanções.

Dada a inelasticidade da oferta de ouro em relação aos preços, estes são determinados basicamente por deslocamentos da demanda. O aumento da demanda pelos bancos centrais colocou o preço em uma trajetória ascendente. O processo de acumulação de reservas em ouro foi liderado pela China, cujo estoque teria aumentado em 350 toneladas entre o final de 2021 e meados deste ano, com contribuições também relevantes da Polônia, Turquia, Índia e Catar, que aumentaram de forma importante seus estoques oficiais.

A demanda privada seguiu a pública. Aqui também a China parece ter tido papel importante. Dada a performance ruim dos mercados acionários e imobiliários nos últimos anos, os investidores chineses teriam aumentado suas compras de ouro — há uma longa tradição de poupar em ouro na China e na Índia. Mas não é só na Ásia: um importante atacarejo americano lançou venda direta de barras de ouro para clientes em 2023, aparentemente com bastante sucesso. De forma mais prática, investidores têm aumentado sua exposição a fundos lastreados em ouro — estes foram lançados no início do século, e passaram a ter maior visibilidade com as crises financeiras de 2008-2011 e mais recentemente, com o período de taxas de juros reais negativas (nas economias maduras) observado na saída da pandemia.

Olhando adiante, os preços do ouro vão seguir refletindo as variações de demanda. Uma elevação das taxas de juros globais a inibiria, e colocaria pressão baixista sobre o metal. Por outro lado, evidência de fragilização da independência dos bancos centrais, acompanhada pela adoção de políticas monetárias menos comprometidas com o controle da inflação e políticas fiscais mais expansionistas, aumentariam a demanda e os preços. Acirramento de tensões geopolíticas globais também impulsionaria a demanda por ouro, notadamente por parte dos bancos centrais. Dada a conjuntura diplomática internacional, ainda que os bancos centrais consigam dirimir dúvidas sobre o combate à inflação, o valor do ouro como reserva contra turbulências geopolíticas não tende a arrefecer no curto prazo.

Link da publicação: https://valor.globo.com/opiniao/mario-mesquita/coluna/corrida-do-ouro.ghtml

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Sobre o autor

Mario Magalhães Carvalho Mesquita