O governo enviou ao Senado há duas semanas três propostas de emenda constitucional: a PEC emergencial, a PEC do pacto federativo e a PEC dos fundos. Aprovar uma PEC é difícil, aprovar três ao mesmo tempo nem se diga.
Há promessa de envio de outra para implementar a reforma administrativa. A ver. E ainda tramita na Câmara a PEC da Reforma Tributária, de iniciativa do Legislativo.
São muitas propostas para serem digeridas ao mesmo tempo. Vou me concentrar aqui em um tópico específico: as mudanças previstas no artigo 239 da Constituição de 1988.
É um assunto transversal, que aparece nas três PECs enviadas para o Senado. O artigo 239 prevê duas formas de vinculação da arrecadação do PIS. A primeira vincula o PIS ao pagamento do abono salarial e do seguro desemprego; a segunda destina 40% da arrecadação ao BNDES para financiar programas de desenvolvimento econômico.
A vinculação do PIS é uma das várias previstas na Constituição. Durante a Assembleia Constituinte, os diversos grupos de interesses da sociedade se articularam. Cada um buscou garantir uma fatia dos impostos e ter um pedaço do orçamento para chamar de seu, criando enorme rigidez na administração dos recursos públicos.
O surpreendente no artigo 239 é vincular um imposto a um empréstimo. Espanta o senso comum —impostos deveriam servir para financiar o gasto público e/ou quitar dívidas, não para fazer empréstimos.
Em 1994, o Plano Real reduziu as vinculações de impostos em 20% através do Fundo Social de Emergência. Em 2016, já rebatizado como DRU (Desvinculação da Receita Orçamentária), o percentual foi elevado para 30%. A DRU afeta a vinculação do PIS como um todo e, por tabela, atinge também a parte do PIS que vira empréstimos para o BNDES. Hoje, o percentual efetivo do PIS emprestado ao BNDES está em 28% (70% de 40%).
O governo procurou, através da PEC do pacto federativo e da PEC emergencial, reduzir ainda mais os empréstimos ao BNDES lastreados na arrecadação do PIS. A PEC do pacto federativo reduz o percentual do PIS a ser repassado ao BNDES para 14%. A PEC emergencial autoriza o governo a suspender todos os empréstimos ao BNDES por dois anos se o Brasil não estiver cumprindo a regra de ouro.
Surpreende que, ao contrário das DRUs, essas PECs não desvinculem o PIS como um todo —elas se preocupam apenas com a parcela do PIS que é canalizada na forma de empréstimos para o BNDES. De toda forma, estão na direção correta e iniciada no Plano Real. Mas já se passaram 25 anos e o Brasil mudou muito desde então. Por que não eliminar de vez essa esdrúxula vinculação de impostos a empréstimos?
Em 1988 talvez fizesse sentido assegurar uma fonte permanente de financiamento ao BNDES. Na hiperinflação que então vivíamos, o BNDES tinha dificuldade em captar a longo prazo, e o mercado de capitais estava ainda engatinhando.
Hoje, no entanto, o Tesouro Nacional coloca no mercado títulos que vencem em 2050. Mais de 22% da dívida pública federal tem prazo de vencimento superior a cinco anos. Nos últimos 12 meses, as emissões corporativas de debêntures são cinco vezes maiores do que os empréstimos do BNDES, e quase metade delas tem prazo maior do que sete anos.
Por que o BNDES não conseguiria captar a longo prazo no mercado os recursos de que carece? O BNDES não precisa mais ser financiado pelo dinheiro de impostos. O correto é eliminar de vez a vinculação do PIS aos empréstimos, independentemente de se o país está ou não em emergência fiscal. O Brasil é maduro para dar esse passo.
Ainda há outro problema, tão ou mais importante. Em 1990 foi criado por lei o FAT —Fundo de Amparo ao Trabalhador, de natureza puramente contábil. A União passou a transferir 100% da arrecadação do PIS para o FAT. E o FAT ficou encarregado de pagar o abono salarial, o seguro desemprego e emprestar 40% do valor arrecadado ao BNDES.
À primeira vista, o FAT seria apenas mais um dos fundos criados para administrar blocos carimbados de recursos públicos. Sua governança é esquisita: embora seja constituído exclusivamente com dinheiro de impostos, seu conselho gestor tem representantes dos sindicatos patronais e trabalhistas.
Mas o pulo do gato foi outro. A Lei do FAT partiu do princípio de que, como o empréstimo ao BNDES era previsto na Constituição, não precisaria ser quitado. Ou seja, o FAT empresta ao BNDES, mas só recebe de volta os juros, nunca o principal. Do ponto de vista do BNDES, os empréstimos se tornaram um passivo sem prazo de vencimento.
O saldo dos empréstimos do FAT ao BNDES está hoje na casa dos R$ 260 bilhões. Seria maior ainda se não fosse o fato de os empréstimos terem sido corrigidos pela TJLP até 2017. Como a TJLP, um dos muitos subsídios não transparentes do Orçamento, ficou sempre abaixo da taxa de mercado, o valor dos empréstimos foi minguando.
Mesmo assim o número impressiona: R$ 260 bilhões dariam conta do abono salarial e do seguro desemprego por quase cinco anos. Ou quase nove anos do Bolsa Família.
O governo Bolsonaro tentou lidar com esse problema por dois caminhos. Primeiro, inserindo um jabuti na medida provisória 889, a MP do FGTS. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas no meio da MP 899 apareceu um artigo que dá poder ao ministro da Economia para disciplinar os critérios e condições da devolução ao FAT dos empréstimos ao BNDES. Foi um jabuti do bem, mas continua sendo um jabuti.
O segundo caminho foi a PEC dos fundos. Ela extingue todos os fundos criados por lei em dois anos, a menos que sejam recriados por lei complementar específica. O patrimônio dos fundos extintos iria para a União.
É difícil saber se a PEC será aprovada e o que vai acontecer em dois anos. Pior ainda, está longe de ser óbvio se o FAT seria extinto pela PEC dos fundos, pois exclui explicitamente fundos criados constitucionalmente. O FAT foi criado por lei, mas regula o artigo 239 da Constituição. Assunto para muito debate jurídico.
Minha sugestão é retirar das PECs os artigos que tratam da vinculação do PIS com os empréstimos ao BNDES. Dois outros artigos entrariam no seu lugar. Primeiro: supressão do artigo 239 da Constituição. Ou seja, uma desvinculação radical do PIS.
O PIS passaria a ser uma fonte não carimbada de recursos, cujo uso pode variar ao longo do tempo de acordo com o Orçamento da União. Deixariam de existir, por consequência, os empréstimos do PIS para o BNDES, esteja ou não o Brasil em emergência fiscal.
Segundo: extinguir o FAT. Suas obrigações —pagar o seguro-desemprego e o abono salarial— passariam a ser obrigações da União. E os R$ 350 bilhões de ativos do FAT, incluindo caixa e todos os empréstimos a instituições financeiras oficiais, entre as quais o BNDES, passariam a ser ativos do Tesouro. Os termos da quitação dos empréstimos seriam fixados pelo Poder Executivo.
São dois artigos simples que resolveriam em definitivo o problema. A União monetizaria os R$ 350 bilhões à medida que os empréstimos às instituições financeiras oficiais fossem sendo pagos. O Orçamento ganharia desde já flexibilidade ao “descarimbar” a arrecadação do PIS. E não haveria nenhum prejuízo aos programas sociais, posto que nada é alterado do ponto de vista dos recebedores do abono salarial e do seguro desemprego.
Fonte: Folha de S.Paulo, 17/11/2019
Os comentários deste artigo não expressam, necessariamente, as opiniões do CDPP.