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A crise econômica produzida pelo Covid-19

Trata-se de uma gripe de elevada letalidade (mas não elevadíssima) e com fácil transmissão. Aparentemente menor em climas quentes e úmidos. O problema é que diversos doentes precisam de recursos hospitalares. Caso contrário a letalidade eleva-se muito. Ou seja, apesar de ser uma gripe, para muitos doentes a prescrição típica para gripe – cama, chá, alimentação leve e um bom livro – não se aplica. A letalidade depende muito da disponibilidade de recursos para tratamento. Em função da alta transmissibilidade, se nada for feito, em pouquíssimo tempo haverá filas nos hospitais. Pessoas morrerão não em função da gravidade da doença, mas sim da falta de recursos humanos e de equipamentos para o tratamento.

A resposta, portanto, de saúde pública em praticamente todos os países, desde a China, tem sido a política de distanciamento social (DS). A política de DS tem como objetivo reduzir a velocidade de propagação da epidemia de forma que o número de novos doentes seja compatível com a infraestrutura hospitalar.

Segundo recente estudo do Imperial College[1], há duas estratégias: mitigação e supressão. Supressão é uma forma extrema da estratégia de DS: para-se tudo com exceção dos hospitais e de alguns setores de primeira necessidade. O custo econômico da supressão é muito elevado. Assim, inicialmente no Reino Unido pensou-se em adotar a estratégia de mitigação: impedem-se todas as atividades que requerem aglomerações.

No entanto, esta estratégia está sob revisão, pois os cálculos do estudo do Imperial College indicam que as diversas estratégias de mitigação gerarão uma pressão sobre os hospitais inúmeras vezes maior do que a capacidade do sistema de saúde. As notícias que chegam da Lombardia no norte da Itália sugerem ser este o caso.

Aparentemente algumas sociedades – é o caso de Cingapura – conseguiram, até o momento ao menos, implantar com sucesso a estratégia de contenção (distinta da mitigação e da supressão). A contenção impede o espalhamento do vírus. No caso da mitigação, tenta-se reduzir os impactos uma vez tendo o vírus se espalhado. A supressão é um caso extremo de mitigação.[2]

Um fator fortuito, a baixa frequência em Cingapura de eventos esportivos e de entretenimento em geral que produzam aglomerações, contribuiu para reduzir a primeira penetração da epidemia. Adicionalmente, a política de contenção demanda controle social muito rígido, tradicional naquela cidade-estado. Qualquer pessoa suspeita vai para quarentena imediatamente, e por meio de entrevistas e de imagens de câmaras, se rastreia o histórico da pessoa por dias e enviam-se para quarentena todas as pessoas com potencial de terem tido contato com a pessoa com suspeita. Há política de testar todos os suspeitos, além de visitas aleatórias e controle pelo gps do celular para os aquartelados.

Finalmente, a estratégia de contenção de Cingapura requer que as fronteiras do país se mantenham fechadas. Qualquer pessoa que chega vai imediatamente para a quarentena, bem como qualquer parente desta pessoa que viva na cidade-estado e tenha contato com o recém-chegado.

Certamente o Brasil não está aparelhado para praticar essa estratégia. Não sei como seria para os países da OCDE.

A política de supressão produz forte desorganização da atividade produtiva. Isto é, se não houvesse restrição de leitos hospitalares equipados com recursos humanos disponíveis, a estratégia ótima seria mitigação com forte foco nos grupos de riscos. Esta era a estratégia inicial do Reino Unido.

Todos os países, com algumas exceções, como o caso que vimos de Cingapura, adotarão a supressão. Para pensarmos daqui para a frente, é necessário imaginarmos se a estratégia de supressão elimina o vírus. Uma possibilidade é que o vírus será eliminado em alguns meses e, a partir deste momento, a vida volta ao normal. O país terá que manter controle estrito das fronteiras e todo ingressante cumprir quarentena de duas semanas.

Não parece que esse cenário seja possível. Após algumas semanas de adoção da estratégia de supressão o crescimento da epidemia será controlado. É natural que haja um retorno à vida normal com afrouxamento dos controles. Se esse afrouxamento for muito intenso é possível que a epidemia retorne com força e, neste caso, pode haver a necessidade de que um novo período de supressão seja decretado. Esse estado de coisas somente será superado quando tivermos a vacina ou quando uma parcela expressiva da população já estiver imunizada.

Provavelmente teremos pela frente um período de experimentação, de tentativa e erro, nos diversos países, em que diversas estratégias serão tentadas. Até a disponibilização da vacina em grande escala operaremos com algum nível de restrição. É possível enxergar que eventos com grande público sejam banidos por um longo tempo.

Não está claro qual será a estratégia antes da disponibilização da vacina e após a flexibilização da estratégia extrema de supressão. Parece que haverá forma menos extrema de mitigação do que a supressão generalizada. Deverá haver a manutenção da operação da indústria e da logística. As atividades que envolvem aglomerações possivelmente serão banidas até o desenvolvimento da vacina. Para as demais atividades deve haver um contínuo entre a eliminação da atividade e a manutenção com controles.

Haverá uma perda de produto elevada no início. E, em seguida, haverá recuperação. No entanto, até que a vacina seja disponibilizada, não deve haver recuperação total.

Para termos ideia do impacto sobre o crescimento imaginemos que a estratégia adotada seja supressão por um trimestre. Considere uma economia que cresça 0,5% por trimestre. Que a supressão por um trimestre signifique que as horas trabalhadas sejam metade do normal. Se nos três trimestres seguintes a economia voltar ao normal e se, adicionalmente, por meio de horas extras, metade da perda do primeiro trimestre for devolvida nos trimestres seguintes, a queda da economia no ano será de 7,8%. Se a estratégia de supressão gerar queda da atividade em 25%, em vez dos 50% do exercício anterior, e mantendo-se as demais hipóteses, o crescimento recuará em 2,5%.

Como a política deve reagir? Quando comecei a escrever essa nota analiseios impactos econômicos empregando a ferramenta que Marshall nos ensinou. A tesoura marshalliana da oferta e da demanda. Penso que para essa crise essa ferramenta analítica não é totalmente útil.

Com a supressão todos ficam em casa. A demanda por restaurante despenca. Temos um choque negativo de demanda. Que é o que temos visto agora. Mas em pouco tempo o restaurante quebrará. A oferta será afetada. Toda a estrutura produtiva ficará rapidamente comprometida. Em pouco tempo teremos uma enorme desorganização do sistema produtivo. Não será possível pensar nessa desorganização em termos de oferta e demanda.

Além de medidas clássicas para a manutenção da demanda, principalmente medidas que visem sustentar a renda, que, de fato cairá, e muito, será necessário uma série de medidas de sustentação dos mercados. Principalmente dos contratos.

Neste momento é importante as autoridades monetária e fiscal, e os governos em geral, desenharem políticas públicas para manterem os contratos e o funcionamento ordenado dos mercados financeiros. Além de prover ampla liquidez para que as empresas consigam rolar capital de giro, manter seus empregados, e pagar seus compromissos, haverá a necessidade de programas para a manutenção do emprego e de complementação de renda para famílias que operam na informalidade. Para alguns setores, como o setor aeroviário, por exemplo, o setor público poderá ter que garantir a demanda de parte dos serviços.

Os bancos públicos, BNDES, CEF e BB, terão que trabalhar em estreita associação com os bancos privados, para prover a liquidez e garantir o capital de giro dos negócios. Adicionalmente, o BNDES terá papel de prover liquidez para o mercado de debêntures.

A dívida pública elevar-se-á e, portanto, parte do custo da parada da atividade produtiva, fruto da estratégia de supressão, será socializada.

Não estão claras as implicações jurídicas do choque. Não será tema para agora, em que estamos no meio do turbilhão, mas certamente a forma como os prejuízos, causados por um evento impossível de estar previsto em contrato, serão compartilhados entre as partes contratantes, pode gerar muito litígio à frente.

De toda a análise fica claro que o maior gargalho – de saúde pública e econômico – é a baixa oferta de leitos, com recursos humanos e materiais, para tratar os doentes. É esta carência que obriga que partamos para as diversas estratégias de DS. Se houvesse oferta muito maior de recursos para tratamento seria possível adotar uma estratégia de isolamento social dos grupos de risco e manter a economia com funcionamento mais próximo do normal. Assim, além das medidas de sustentação da renda, deve ser prioritário a elevação do número de leitos com recursos humanos e devidamente equipados.

Agradeço os comentários de Helio Gurovitz, Raul Jungman e Rodrigo Morais para a elaboração deste artigo.

Fonte: IBRE

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.


[1] Neil Fergunson e colaboradorses, “Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce COVID-19 mortality and healthcare demand”, Imperial College COVID-19 Response Team, 16 de março de 2020, https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf.

[2] Veja os posts de Helio Gurovitz: https://g1.globo.com/google/amp/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2020/03/16/como-achatar-a-curva-parte-1.ghtml.

Sobre o autor

Samuel Pessôa