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O que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil

Há leis gerais da economia que funcionam em todos os lugares, mas se adotadas no Brasil seria um desastre

ESTADÃO

No Presidential Address da AEA de 2019, Olivier Blanchard mostrou que, sob certas condições, o tamanho da dívida pública não é a métrica adequada para aferir o risco fiscal, e que o aumento dos gastos financiados com dívida pode acelerar o crescimento e gerar ganhos de bem-estar. Será que no Brasil não estaríamos exagerando no temor quanto ao tamanho da dívida e na necessidade de conter o crescimento dos gastos públicos?

Na Reunião do FMI de 1991, em Bangcoc, Larry Summers afirmou que: “As leis da economia são como as leis da engenharia. Há somente um conjunto de leis, e elas são as mesmas em todos os lugares”. É grande a semelhança entre a economia e a engenharia, mas além de dominar a ciência, que lhes permite deduzir “leis gerais”, engenheiros e economistas têm de dominar a arte da sua aplicação no mundo real.

Se a taxa real de juros for baixa e persistentemente inferior à taxa de crescimento econômico, uma dívida pública alta pode não ter custos econômicos, e Blanchard demonstrou que, à exceção do período Volker, há mais de 20 anos é isso que ocorre nos EUA. No Brasil, no entanto, à exceção do último ano, no qual o Banco Central derrubou a taxa Selic para valores reais negativos, a taxa real de juros sempre excedeu a taxa de crescimento econômico. A menos que nos submetamos cegamente à falácia da autoridade, o que é bom para os EUA nem sempre é bom para o Brasil. Não podemos cometer erros como o dos engenheiros que planejaram o Comet, um dos primeiros aviões comerciais com turbinas a jato, que calibraram a resistência dos materiais na ligação da asa ao corpo da aeronave usando a frequência das oscilações dos motores a explosão, e não a dos motores a jato, fazendo com que asas se desprendessem da aeronave em pleno voo. 

Uma das grandes contribuições de Summers foi demonstrar que as taxas de juros baixas nos países desenvolvidos são um fenômeno real, e não monetário. Os modelos estimados pelos economistas do Federal Reserve e por Summers e Rachel deixam claro que nos países desenvolvidos há uma tendência declinante da taxa real neutra de juros, que já se aproxima de zero. A taxa neutra é a que iguala poupanças e investimentos, e dentre as causas de sua queda predominam: o crescimento da poupança dos indivíduos que se deve ao aumento da esperança de vida (se vou viver mais, tenho de acumular mais ativos para consumir na velhice); e à queda da produtividade marginal do capital, devido a alterações tecnológicas e estruturais (no setor de serviços, a produtividade depende menos do capital físico e mais do capital humano e dos sistemas do que na indústria). Com taxas de inflação e de juros reais muito baixas, os juros nominais ficam próximos de zero, e no artigo publicado em dezembro pelo Peterson Institute, Furman e Summers deixam claro que isso levou à perda de eficácia da política monetária nos EUA, exigindo que na recuperação da recessão da covid seja preciso usar estímulos fiscais. 

Blanchard foi mais longe. Apesar de percebida como economicamente (e moralmente) destrutiva, uma dívida púbica elevada pode não ter nem custos econômicos nem custos de bem-estar. O custo econômico é provocado pelo aumento de impostos necessário para garantir o pagamento da dívida, mas os impostos distorcem e reduzem o crescimento. No entanto, quando a taxa real de juros é inferior à taxa de crescimento econômico, não é preciso aumentar impostos: basta manter nulo o resultado primário para que o numerador da relação dívida/PIB cresça a uma taxa (real de juros) menor do que a do denominador. Já o custo de bem-estar é a consequência de os títulos públicos ocuparem o espaço dos títulos privados nas carteiras de ativos dos poupadores, e de reduzirem a acumulação de capital, diminuindo o consumo e o crescimento no futuro. Ele demonstra que, entre ganhos e perdas, predomina um pequeno custo. Porém, mesmo assim pode existir um ganho de bem-estar, desde que o crescimento da dívida seja usado para financiar investimentos com altas taxas de retorno social.

Se aceitarmos os “fatos estilizados” utilizados por Summers e Blanchard é impossível rejeitar suas conclusões. Mas será que são válidos no Brasil? Embora eu desconheça qualquer estimativa de sucesso da taxa real neutra de juros para o Brasil usando a metodologia do Fed e de Summers e Rachel, há técnicas que permitem, com razoável dose de acerto, concluir que ela tem clara tendência declinante e se situa bem acima de zero, superando a taxa de crescimento econômico. Embora no pós-covid a Selic em termos reais tenha sido negativa, este é um fenômeno monetário transitório, e não um fenômeno real persistente. No Brasil, até que boas políticas econômicas produzam efeitos, a taxa real de juros continuará superando a taxa de crescimento econômico.

Antes da emenda constitucional que congelou os gastos primários reais, as despesas obrigatórias, com participação dominante dos gastos com a Previdência e a folha de pagamentos dos funcionários, cresciam a 6% ao ano, bem acima do crescimento do PIB. Como a taxa real de juros supera a taxa de crescimento econômico, a dívida só não crescia devido ao aumento de impostos, que reduziam o crescimento. Além das distorções dos impostos, havia o custo da má alocação dos gastos públicos, premiando aposentadorias precoces aos 50 anos de idade, e mantendo salários exagerados no funcionalismo, com ambos levando à sensível redução dos investimentos públicos, muitos dos quais têm elevado retorno social.

A emenda congelando os gastos em termos reais buscava impor uma restrição que obrigasse a aprovação de reformas, como a da previdência e a administrativa, e, acima de tudo, obrigar o governo a decidir o que e quanto gastar a partir de critérios de custo e benefício social. Quando o governo não tem um programa econômico articulado, é fatal que as decisões do Executivo e do Congresso beneficiem os interesses privados, de empresários e corporações, abandonando o caminho correto da busca dos benefícios sociais. Este é o País no qual vivemos, com instituições fracas que submetem as “regras do jogo” aos interesses privados, perdendo de vista os benefícios sociais. É um mundo muito distante do suposto por Blanchard e Summers. 

Ao elevar a dívida/PIB os gastos com a covid aumentaram os riscos e a inclinação positiva da curva de juros. Caiu a taxa básica de juros, mas elevaram-se as taxas mais longas. Ao Tesouro restam as opções de sancionar a elevação do custo da dívida, pagando prêmios nos títulos longos e aumentando o custo da dívida, ou encurtar o prazo médio de vencimento, o que dificulta sua administração e aumenta o risco da repressão financeira, que inclina ainda mais a curva de juros, fechando-se um círculo vicioso. Para os adeptos da MMT bastaria emitir moeda, mas não quero colocar esta proposta no mesmo nível das análises sérias de Blanchard e Summers, e por isso me recuso a analisá-la. 

Há leis gerais da economia que funcionam em todos os lugares. Mas se aplicássemos no Brasil literalmente o que Blanchard e Summers recomendam para os EUA e para países com taxas de juros estruturalmente muito baixas, tudo funcionaria como se instalássemos as turbinas de um Boeing em um velho Douglas DC3, esperando que com isso seu desempenho melhorasse. O resultado seria um desastre!

Link da publicação: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-que-e-bom-para-os-eua-nem-sempre-e-bom-para-o-brasil,70003569014

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.

Sobre o autor

Affonso Pastore