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A reconstrução do Brasil vai depender de inovação corajosa de desenho jurídico

O Globo (publicado em 18/03/2022)

A Lei Geral de Telecomunicações (a LGT, lei 9.472, de 1997), que viabilizou a reorganização do setor no Brasil, comemorará em breve seu 25º aniversário. Caso pouco comum.

Primeiro, por a lei ter sido base suficiente da mudança radical do modelo econômico. Nos 25 anos anteriores, o setor estivera sob monopólio da Telebras, criada em 1972 — uma empresa estatal que, misturando métodos e interesses corporativos ou políticos, era responsável por regular a si mesma.

Contrapondo-se a isso, a LGT usou construções jurídicas inusitadas para estruturar um regulador externo autônomo e com governança moderna (a Anatel), autorizar a desestatização, prever a abertura à competição e dar espaço à inovação na oferta de serviços. Uma lei juridicamente vanguardista: ela teve de confrontar a tradição do meio jurídico para ancorar a revolução de um setor vital da economia.

Segundo: ela foi, e ainda é, uma lei efetiva. A Anatel se instalou rapidamente e editou sem sobressaltos os regulamentos e documentos necessários. A desestatização veio um ano após, foi total, e deu a largada na competição — que, ao longo do tempo, cresceria mais do que em outros setores.

A lei não se limitou a delegar poderes: ela mesma construiu, com clareza e coerência, a governança e a programação jurídica essenciais ao setor, limitando possíveis reversões voluntaristas ou oportunistas. Ao mesmo tempo optou pela simplicidade e criou flexibilidades, dando estímulo à inventividade empresarial e à contínua revisão das políticas públicas e das opções regulatórias.

Terceiro: a LGT se firmou como base legislativa de impressionante estabilidade. Ela foi pouco alterada em 25 anos. Desde então, e até hoje, a estrutura setorial criada em 1997 tem se mantido. Mas os regulamentos foram mudando, permitindo que os usuários se aproveitassem da evolução tecnológica e da dinâmica empresarial nas telecomunicações.

Em outros setores — portos, energia e saneamento, por exemplo — a situação é outra: leis modificativas surgiram continuamente, às vezes para confirmar as orientações que haviam inspirado a lei anterior, às vezes para corrigir insuficiências jurídicas ou incongruências. Rodadas legislativas repetidas vão dando espaço para lobbies oportunistas e geram paralisia, confusão e incerteza, redundando em distorção e frustração dos planos de modernização.

Fizeram diferença a concisão e consistência jurídica da LGT, bem como suas soluções avançadas de governança pública: concentração e definição clara de competências, dever de revisão periódica das políticas, mandato para os dirigentes, decisões por processo administrativo, consulta pública para todos regulamentos, participação da sociedade, transparência, ouvidoria, etc.

Claro que a preservação no tempo da LGT não decorreu somente das características jurídicas, mas também de os governos posteriores não terem gasto capital político para desfigurá-la. Foi diferente no setor petrolífero, cujo modelo de privatização, também concebido em 1997 e baseado juridicamente em concessões, viria a ser excluído da importante área do pré-sal (por uma lei de 2010, com resultados problemáticos).

O setor de telecomunicações se saiu melhor. Ficou preservado pela LGT, apesar dos apetites mais centralizadores e estatizantes dos governos seguintes. Por certo isso seria inviável se, na prática, o modelo econômico de exploração privada das telecomunicações em competição não tivesse se mostrado tão superior ao estatal monopolista. Mas os pilares de governança pública com que a LGT o implantou, bem como a concisão e consistência do desenho legal, foram importantes para proteger o setor nas turbulências políticas.

Essas experiências nos ensinam que o fator jurídico não é secundário; ele importa, e muito. Não se faz transformação verdadeira com improviso, confusão, repetição e inércia jurídicas. Construções jurídicas corajosas, criativas, focadas e atentas à governança pública são indispensáveis para viabilizar e proteger revoluções econômicas, comportamentais ou políticas.

A partir de 2023, se o atraso não vencer mais uma vez, o Brasil terá sua oportunidade de reconstrução. Para tanto, vai ter de reformar muita, muita coisa no mundo público. Não vai acontecer, ou não vai durar, se não formos capazes, com coragem, criatividade, foco e visão de futuro, de substituir as chaves jurídicas que contribuíram para a deterioração que nos trouxe até aqui. Com preguiça ou esperteza no desenho jurídico não vamos sustentar a reconstrução necessária ao país.

Link da publicação: https://blogs.oglobo.globo.com/fumus-boni-iuris/post/carlos-ari-sundfeld-reconstrucao-do-brasil-vai-depender-de-inovacao-corajosa-de-desenho-juridico.html

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Sobre o autor

Carlos Ari Sundfeld