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O mundo iniciou 2022 saindo da pandemia. Finalmente pode respirar aliviado, com algumas dúvidas ainda, mas reestabelecendo a vida pelo menos próxima daquela que tínhamos antes do surgimento da Covid-19.
Quais eram as principais questões, rescaldos de período tão inusitado e difícil?
A primeira delas é que o mundo “renasceu” algo como 10 anos mais digitalizado, mais virtualizado. Mas, além disso, por questões de dificuldade de oferta de insumos, matérias-primas etc., saímos com uma enorme pressão de custos tanto em produtos manufaturados, mas também em serviços, setor que mais sofreu com os lockdowns e que teve mais dificuldades em voltar à normalidade.
Muita gente teve o diagnóstico de que o enorme aumento de inflação se deveu a esse quase generalizado aumento de custos de insumos, mas ficou claro que o que está de fato predominando em todas as pressões inflacionárias, na verdade, é uma demanda muito exuberante.
O diagnóstico é de que estamos, na verdade, com grande pressão de demanda, embora ainda não unânime, mas já bastante majoritária. E as razões são relativamente simples: excessos de estímulos.
O mundo, principalmente as nações desenvolvidas, tem praticado desde o início da pandemia um volume de estímulos sem precedentes em nossa história mais contemporânea. Nem na crise de 2008 se estimulou tanto e em tantas frentes.
O juro foi a zero nos EUA, Europa e vários outros lugares. Foi colocada uma liquidez que levou o balanço do Fed a mais de $ 9 trilhões e o estímulo fiscal em muitas frentes, de cheques aos cidadãos a cestas básicas, também foi enorme, alcançando até 10% do PIB somente no ano de 2020.
Essa inflação a ser “tratada”, recorde de várias décadas, cravando mais de 7% nos últimos 12 meses findos em fevereiro nos EUA, por si só já trazia um belo desafio na volta à normalidade das políticas públicas. Ou seja, trazer os juros à taxa neutra, reduzir a liquidez dos sistemas financeiros, reduzir o enorme balanço dos bancos centrais, principalmente o FED e ECB, além de reduzir a expansão anual no front fiscal.
Acontece que “pouco desafio é bobagem”. Veio a guerra da Rússia com a Ucrânia, algo absolutamente inaceitável do ponto de vista humano e social. E que recebeu um tratamento pelo Ocidente proporcional a isso, fazendo principalmente Europa e EUA tomarem sanções em geral, mas principalmente econômicas que não havíamos visto ainda, pela sua abrangência e pela sua intensidade.
No lado financeiro, foram congeladas as reservas internacionais da Rússia, cerca de $ 600 bilhões, além da fortuna de vários oligarcas russos que moram na Europa, em vários países. EUA e Europa gradualmente pararam de importar o petróleo e o gás russos, também outras commodities, além de várias outras sanções de menor abrangência.
Além de impactos de mais longo prazo, como riscos geopolíticos, um menor comércio internacional, uma preferência por produzir insumos localmente e mais diversificadamente, temos os efeitos diretos que são de curto prazo.
Tivemos um enorme aumento do preço do petróleo, do gás e de seus insumos, além da maioria das outras commodities. Ou seja, mais um choque generalizado de custos a ser tratado nesse fim de pandemia. E do lado do crescimento, uma redução da confiança vinda do conflito, afinal muita incerteza vem com ele, gerando um desafio duplo adicional, mais inflação com menos crescimento.
Qual é a resultante dessa história? A chance de uma recessão nos EUA e no mundo cresceu de maneira substancial, pois mesmo com alguma desaceleração, a inflação está alta demais, tendo que ser tratada de acordo.
Para um brasileiro é relativamente simples: coloque a taxa de juros suficientemente acima da inflação projetada à frente, considerando um juro neutro com relação a ela, ou seja, considerando a taxa de juros e o restante das políticas, liquidez e fiscal que você conseguirá trazer a inflação gradualmente para a meta de 2% a.a. do Fed.
Esse fenômeno, inflação tão alta e persistente, ninguém do Fed ou do mercado já viveu de verdade nos EUA e é por isso que todos demoram a convergir para o remédio na dosagem necessária.
Só para deixar claro o argumento, o FED tem dito que talvez tenha que subir os juros acima da taxa neutra, que seria de 2,5%, mas ela era calculada em 2,5% porque era a inflação que sempre rodou a 2% ou menos, mais um juro real de 0,5%. Mas hoje a inflação projetada para 2022 é superior a 6% e para 2023 de 4/4,5%. Na prática, se o juro real neutro for mesmo de 0,5% e se não houvesse outros componentes como a liquidez e a política fiscal, o FED teria que subir os juros para algo superior a inflação projetada mais o juro neutro real.
No final, estamos falando de algo como 4,5% de inflação pelo menos, 0,5% referente ao juro neutro, menos o efeito da redução de liquidez. Portanto, do balanço do FED que poderíamos estimar em algo como 1%, imaginando uma política fiscal relativamente neutra, teríamos que ter a taxa de juros dos FED Funds indo acima de 4%, para ela entrar no terreno contracionista e de fato ajudar a inflação a retornar a sua meta.
Um último argumento, que pode “ajudar” o FED a não ter que subir tanto, vem do comportamento recente dos ativos, principalmente ações, que vem sofrendo bastante com todos esses choques. E mais os desafios que o mundo desenvolvido está tendo que enfrentar, o próprio S&P cai mais de 15% este ano, com as maiores empresas, as de tecnologia caindo entre 25% e 40%. Esse comportamento aperta fortemente as condições financeiras, o que acaba fazendo, pelo menos parcialmente, o trabalho da taxa de juros. Afinal, capital mais escasso e caro para as empresas ajuda a desaquecer a economia, mercado de trabalho e finalmente a inflação.
Por isso, fica a pergunta: será que a recessão com a qual o mercado começa a “flertar” não vai ajudar o FED em seu trabalho?
As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.