A vitória da democracia é vital à reforma pública no Brasil
JOTA
Já que mudanças são naturais ao mundo público, o destino do direito público é a metamorfose. A sabedoria está em barrar deteriorações, cuidar do patrimônio jurídico e abrir caminhos para fazê-lo avançar (e não retroceder). Desafios da reforma como função pública permanente.
Algo importante a reformar no Brasil são os controles exteriores à administração pública. Vamos ter de mexer no controle de contas e nos processos judiciais e torná-los equilibrados e mais deferentes (sobre isto, Eduardo Jordão aqui na Publicistas). Só que, para viabilizá-lo, a governança administrativa interna também vai ter de melhorar, e muito (sobre isto, meu artigo com Conrado Tristão). Reformas interligadas, bem difíceis.
A Lei das Estatais de 2016, e sua aplicação nesses seis anos, são um patrimônio, exemplo do que preservar (tema de Marçal Justen). Seu objetivo, como reconhecido pela OCDE, foi blindar as estatais do assédio (político-partidário, corporativo e empresarial) por meio de uma governança poderosa, estável e comprometida com o sistema interno de conformidade. Na visão de Ana Paula Vescovi, a lei tem ajudado: em quatro anos, valorizou-se em 75% o patrimônio líquido da União em suas controladas.
Missão mais delicada está em outra frente: reverter a dissipação e a sabotagem de instrumentos ou valores fundamentais de nosso direito público.
O que veio acontecendo com a Carta de 1988 em seus 30 anos iniciais foi uma dissipação paulatina. De um lado, pelas sucessivas emendas constitucionais para atender circunstâncias e grupos de interesse; de outro, por uma jurisdição constitucional prolixa, inconstante e personalista. Nosso Direito Constitucional foi perdendo estrutura e densidade.
A coisa piorou desde 2019, depois que se acionou o modo sabotagem. O emendamento constitucional cresceu (só em 2022, já foram oito ECs, sem contar a PEC Kamikaze) e, pior, passou a servir à destruição das bases mínimas do direito público, como a transparência e equilíbrio nas contas públicas. Em paralelo, vagas no Supremo Tribunal Federal, cúpula da jurisdição constitucional, iam abrindo autênticas guerras de ocupação.
Tudo coerente com a ação política oportunista e contra instituições do presidente da República e seu grupo, obrigando o STF a virar “controlador de normalidade”, como notou José Vicente. Mas é um papel arriscado. Ou alguém acha simples o STF, em nome do equilíbrio eleitoral, anular algo como a PEC Kamikaze, a que o Parlamento aderiu em peso?
No curtíssimo prazo, teremos de gerenciar os riscos criados pela dissipação e, mais ainda, pela sabotagem. Se funcionar, a prioridade jurídica seguinte, a disputar a congestionada agenda política de urgências, será reverter o inflacionismo da Constituição, reformar a jurisdição constitucional e voltar à normalidade, inclusive no sistema de Justiça. E aí abrir espaço para reformar em conjunto os controles públicos e a governança interna da administração.
Para isso, neste outubro de 2022, a democracia tem de vencer no Brasil. Sem ela, não há chance de o direito público avançar.
Link da publicação: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/direito-publico-por-um-fio-12072022
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