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Diálogo prévio com o controle: cavalo de Troia na gestão pública

Artigo escrito para este blog destacou o crescente protagonismo do Tribunal de Contas da União (TCU) e avaliou que o movimento seria sobretudo de “auto expansão, por vezes juridicamente questionável”. Assim, o avanço do Tribunal em assuntos da administração estaria mais relacionado à busca por poder do que a uma opção de arranjo institucional do legislador. Pesquisas recentes apontam na mesma direção.[1]

A proposta deste texto é explorar a mecânica do movimento de “auto expansão” do TCU a partir de uma de suas manifestações mais evidentes: a ampliação de espaços e oportunidades para o controle intervir antes de o Executivo tomar decisões em temas típicos de gestão pública. Esse fenômeno, ao lado de outros fatores, parece-nos estar na origem de um dos mais importantes desafios de governança pública da atualidade.

O controle de contas prévio — isto é, a revisão de atividades administrativas ou financeiras antes da ocorrência dos fatos — não é, em si, incompatível com o trabalho de supreme audit institutions (SAIs), gênero no qual se insere o TCU. É o que se deduz da Declaração de Lima da International Organization of Supreme Audit Institutions (INTOSAI), documento elaborado por organização internacional não governamental que fixa diretrizes-base para a atuação de SAIs mundo afora. Mas apesar de reconhecer no controle de contas prévio um valor (a possibilidade de impedir prejuízos antes de sua ocorrência), a Declaração de Lima não o define como habitual. O motivo? Ele embutiria “a desvantagem de gerar um volume excessivo de trabalho e confundir as responsabilidades previstas no direito público”.

O Brasil abandonou a cultura do registro prévio com a Constituição de 1967 — o aval do controle de contas era condição necessária para a realização de despesas — e optou pelo controle em regra a posteriori. A mudança coincidiu com o crescimento exponencial do estado brasileiro e de suas funções.

Ocorre que a despeito de não ter havido reforma legislativa acerca do momento do controle de contas, o TCU, por meios variados, tem procurado criar, ele próprio, espaços e oportunidades para se manifestar de modo prévio. No campo das contratações públicas, por exemplo, essa é uma realidade conhecida.[2]

O movimento vem acompanhado do discurso de que o Tribunal teria a “a missão constitucional de aprimorar a Administração Pública em benefício da sociedade”[3] e de que ele, um órgão de estado com viés técnico, estaria aberto a colaborar com o gestor e a orientá-lo em seu cotidiano, ajudando-o a errar menos e a tomar decisões mais seguras e consistentes.

Dois mantras derivados desse discurso costumam ecoar no âmbito do TCU. O primeiro: o Tribunal está aberto ao diálogo com o gestor — então, por que não dialogar? O segundo: prevenir é melhor do que remediar — então, independentemente do que disponham as normas jurídicas, que mal haveria em aceitar manifestações prévias do controle de contas em temas de gestão pública?

É uma técnica de comunicação curiosa. Com base em premissa abstrata (é bom haver diálogo e ser precavido), chega-se a conclusão bem concreta e potencialmente conflituosa (é desejável que, sempre que possível, se procure o órgão de controle antes de decidir).

Pela ótica do gestor público, o convite ao diálogo prévio com o controle de contas é sedutor.

O TCU é órgão equipado pelo Direito para, entre outras coisas, emitir comandos — por exemplo, para determinar a correção de ilegalidades (art. 71, IX, da CF) e a suspensão cautelar de processos licitatórios (art. 171, § 1º, da lei 14.133, de 2021) — e aplicar sanções e imputar débitos (art. 71, VIII e § 3º da CF).

Em matéria de responsabilização pessoal, as normas infraconstitucionais acabaram prevendo limites muito fluidos à atuação do TCU. A lei 8.443, de 1992, por exemplo, dispõe que o Tribunal pode aplicar sanções ou determinar o ressarcimento de danos ao erário sempre que constatar a prática de “ato de gestão ilegal, ilegítimo ou antieconômico”. Com base nesse dispositivo de conteúdo indeterminado, o TCU vem punindo gestores públicos em situações variadas, mesmo quando o comportamento sancionado não está tipificado de modo expresso na legislação e mesmo quando a regra violada não guarda relação com a execução de despesas ou arrecadação de receitas públicas.

Nesse contexto, o convite para dialogar pode soar como atalho para uma vida menos turbulenta no curto prazo: mais agilidade na implementação de projetos do Executivo, mais segurança jurídica na gestão pública e menos espaço para uma sanção pessoal.

Entretanto, o convite para diálogo prévio com o controle de contas pode ser um cavalo de Troia na administração.

O primeiro problema é que ele propõe ao gestor público que trilhe um caminho praticamente sem volta. A partir do momento em que se aceita a premissa geral de que administrar envolve diálogo prévio com o controle de contas, como justificar o retorno ao “velho normal”? Eventuais tentativas de demarcar as funções administrativas e de controle provavelmente serão vistas com grande desconfiança (afrouxamento da fiscalização, redução da transparência, abertura de espaço para corrupção etc.).

O segundo problema é que a naturalização do diálogo prévio cria, no plano fático, “novo modo de administrar” no qual o controle de contas assume o papel de cogestor oculto. Ele age como cogestor — trabalhando para imprimir suas visões e preferências em decisões típicas de gestão pública — mas sem se sujeitar aos ônus normais que recaem sobre agentes do Executivo — isto é, sem se comprometer com os resultados que suas decisões possam produzir ou se submeter a controles democráticos. É uma posição bastante confortável. Bônus, sem ônus significativos, produzindo déficit de accountability no exercício da função administrativa.

O peso da atuação do TCU como cogestor oculto no ambiente das contratações públicas começa a ser medido em números. Pesquisa recente constatou que o controle prévio de editais de concessões acresce, em média, 210 dias a processos licitatórios.[4]

Ademais, esse “novo modo de administrar” tende a estimular que o mundo da política use mais intensamente o amplo acesso que tem ao controle de contas para influir na gestão pública e sabotá-la. Tribunais de contas são auxiliares dos Legislativos e vários de seus membros decisores são egressos do Parlamento. Não se pode negar que sejam instituições com elevada sensibilidade política.

O terceiro problema inerente ao diálogo prévio com o controle de contas é que ele tende a colocar o gestor público em situação de “coação irresistível”. Como o TCU é órgão de controle armado pela Constituição para mandar e punir, é natural que, no diálogo prévio com a administração, suas opiniões sejam assimiladas pelo gestor como argumento de autoridade, comandos a serem implementados.

A existência de um espaço de discricionariedade do gestor para decidir sobre temas da administração acaba ficando condicionada à disposição do órgão de controle para intervir no caso concreto. O terreno é movediço. Para passar por ele incólume ou com poucos arranhões, o mais seguro é sempre acatar a visão do controle. Há pesquisas que apontam que o diálogo prévio em contratos de concessão tende a inibir inovações.[5]

O fenômeno da paralisia decisória na administração — que, no Brasil, ficou conhecido pela expressão “apagão das canetas” — parece ter relação forte com o movimento de ampliação do controle de contas prévio à tomada de decisões. Em face desse “novo normal”, é razoável esperar do gestor menos proatividade, inovação e assunção de riscos. No longo prazo, esse curto circuito no processo decisório pode minar de modo significativo a capacidade do Executivo de gerir a coisa pública.

Como superar esse nó de governança?

O primeiro passo é aceitar que o diálogo prévio com o controle de contas, que deveria garantir segurança jurídica à atuação de agentes públicos, não está funcionando.

O segundo passo é reconhecer que a administração necessita de previsibilidade. É preciso dar a agentes públicos — desde o servidor na linha de frente até a autoridade com poder decisório — a oportunidade de conhecer, de antemão, as regras a serem seguidas e os comportamentos reprováveis. Esse parece ser o caminho para gerar segurança jurídica, e não o diálogo prévio com o controle de contas no caso a caso.

Não há bala de prata. Contudo, é fundamental que iniciativas de reforma transcendam discursos e estejam amparadas na realidade.

André Rosilho, advogado, é professor da FGV Direito SP, coordenador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP). Doutor em Direito pela USP e mestre em Direito pela FGV Direito SP.

André de Castro O. P. Braga, advogado, é doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-SP, mestre em Direito pela FGV Direito SP e pesquisador do Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP).

Artigo da série Reformas no Mundo Público, sob curadoria de Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito e sócio do CDPP.

As opiniões aqui expressas são do autores e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos associados.


[1] Ver, por exemplo, Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho (org.). Tribunal de Contas da União no Direito e na Realidade. São Paulo: Almedina, 2021.

[2] Sobre o tema, ver Eduardo Jordão. “A intervenção do Tribunal de Contas da União sobre editais de licitação não publicados: controlador ou administrador?”, em Carlos Ari Sundfeld e André Rosilho (org.). Tribunal de Contas da União no Direito e na Realidade. São Paulo: Almedina, 2021, p. 337-364.

[3] Relatório Anual de Atividades do TCU: 2021/ Tribunal de Contas da União. Brasília: TCU. 2022, p. 25.

[4] Ana Carolina Alhadas. TCU: o dono do seu próprio tempo. O tempo de decisão do Tribunal de Contas da União nos processos de acompanhamento das desestatizações federais. Dissertação de Mestrado (documento apresentado para exame de qualificação). Professor Orientador: Eduardo Jordão. FGV Direito Rio. Rio de Janeiro, 2022, p. 74.

[5] Sobre o tema, ver André de Castro O. P. Braga. O Tribunal de Contas da União inibe inovações em concessões públicas? Dissertação de Mestrado. Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV-RJ, 2015. Link: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13470

Sobre o autor

André Rosilho

Sobre o autor

André de Castro O. P. Braga