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Reformas no ensino público: financiamento, currículo e carreiras

A aproximação do período eleitoral reanima discussões sobre reformas necessárias ao Estado brasileiro. Na educação pública, há pontos estratégicos que vêm sendo reformados.

O financiamento é um deles. Em 2020, foi aprovado um novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação[1]. O novo Fundeb busca uma distribuição maior e mais equitativa de recursos, por exemplo com a norma que determinou que pelo menos 10% dos recursos do ICMS sejam distribuídos aos municípios com base em indicadores educacionais. Mas não há vitória garantida. A Lei Complementar nº 194/2022, que alterou a arrecadação do ICMS, trouxe perdas para a educação pública. O Todos Pela Educação calculou em R$ 19,2 bilhões o impacto da limitação do ICMS no Fundeb[2]. É preciso instituir mecanismos de compensação e sustentabilidade ao Fundeb, sobretudo em períodos de crise.

O ensino integral é outra importante reforma. A história da educação pública no Brasil mostra que políticas de ampliação do acesso, muitas vezes, foram sustentadas por turnos reduzidos de aulas e pela precarização dos espaços e do trabalho docente. Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, ao longo do século XX, levantaram a bandeira de uma escola de tempo ampliado e de estrutura, equipe e currículo capazes de atender as crianças integralmente. Suas propostas foram acusadas de serem caras e complexas, como se crianças de escolas públicas não merecessem tanto. Hoje, são muitas as pesquisas que mostram os resultados positivos das escolas integrais, a exemplo do Ensino Médio de Pernambuco[3]. Ampliar esse modelo curricular para todas as escolas brasileiras deve fazer parte dos próximos planos para a educação.

Falando em currículo, outra pesquisa recente, realizada pelo Datafolha[4], indicou que os jovens brasileiros querem formação para o trabalho e para o ensino superior. Durante muito tempo, formação profissional e formação acadêmica estiveram dissociadas no Brasil, em razão de políticas que promoveram uma visão segregacionista dos modelos de ensino. A Constituição de 1937, por exemplo, dizia explicitamente que o ensino profissional seria destinado às classes mais pobres, tendência que se manteve em legislações posteriores. A Constituição Federal de 1988 mudou a abordagem, prevendo a qualificação para o trabalho como um dos objetivos da educação nacional, ao lado do preparo para o exercício da cidadania e do pleno desenvolvimento individual. A reforma proposta pelo Novo Ensino Médio busca concretizar essa visão, colocando os interesses dos alunos no centro de um currículo moderno e flexível, mas ainda com muitas dificuldades de implementação. Se não forem garantidos estrutura, carga horária e equipes de trabalho adequadas à nova proposta curricular, a reforma pode aprofundar desigualdades.

Uma escola com financiamento adequado, turno integral e currículo flexível parece um cenário ideal. Mas, convidada a escrever este texto, o primeiro tema que me veio à mente foi outro. Reformas serão insuficientes se não pensarmos no mais importante: as pessoas. A seleção e carreira dos profissionais da educação são estratégicas para a qualidade do ensino e têm movimentado reformas pelo mundo.

No Brasil, professores são selecionados, em regra, por concurso público. O modelo, que começou na década de 1930, foi uma conquista para a carreira. Em outros países da América Latina, processos impessoais de seleção docente são muito mais recentes. Pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)[5] conta que na Colômbia, até 2002, professores eram nomeados por atos administrativos, sem transparência e sob forte pressão política. No Equador, até 2007, comitês locais realizavam provas arbitrárias e faziam nomeações com base em filiações sindicais. No México, até 2000, os docentes eram designados por recomendação do sindicato nacional ou de governos locais. O BID identificou que a cultura personalista em torno da seleção era tão arraigada que em algumas regiões o cargo tinha caráter permanente, com casos de venda ou transmissão do posto docente por herança!

Esses países tiveram de fazer mudanças drásticas em seus processos de seleção nas últimas décadas, para superar modelos discricionários e personalistas, algo que já garantimos com nosso concurso público. Contudo, não podemos estagnar nessa conquista. A garantia de isonomia é uma das funções do concurso. Com ela, há a promoção de eficiência e de diversidade no setor público.

Garantir eficiência, por exemplo, depende de um bom planejamento das seleções, que leve em conta uma visão mais estratégica do que burocrática do RH da educação. Primeiro, é preciso garantir previsibilidade ao poder público e aos candidatos. Professores se formam e não conseguem estimar quando será o próximo concurso público. Há estados que chegam a ficar uma década sem abrir concurso docente. O Poder Público, por outro lado, tem dificuldade de prever a força de trabalho necessária aos próximos anos e pouca flexibilidade na definição dos modelos de contratação, frequentemente recorrendo a contratos precários.

Ter estratégia de RH também significa fazer processos seletivos orientados para as necessidades das escolas: que perfis de profissionais e com quais habilidades a rede de ensino precisa contar? É preciso considerar os novos currículos, o ensino integral e as atuais competências e tecnologias ligadas à educação. Para isso, as provas de seleção podem avaliar mais do que conhecimento objetivo. Na maior parte dos editais, o que se espera dos candidatos é que decorem matérias. Documentos legais, como o ECA e o estatuto dos servidores, são uns dos conteúdos mais cobrados em concursos docentes[6]. Importante que os professores conheçam as leis, mas será que isso é o que mais impacta no seu dia a dia?

Há modelos de seleção capazes de avaliar a didática e até aspectos psicológicos dos profissionais, e que podem ser aliados às provas de conhecimento e de títulos. O Projeto de Lei n.º 252/2003, que propõe uma lei geral para os concursos públicos, traz previsões que garantem maior incentivo e segurança jurídica para gestores públicos planejarem seus concursos com eficiência e qualidade[7]. Se aprovada, a nova lei poderá ser aplicada na seleção de docentes nos estados e municípios.

Por fim, é preciso trazer as escolas para participarem da gestão de pessoas. Os cargos escolares foram organizados levando em conta mais os interesses das carreiras do que das escolas. Embora a legislação educacional preveja autonomia pedagógica, financeira e administrativa[8], o que incluiria a gestão do trabalho, quase todas as regras vêm de fora para dentro, com baixíssima discricionariedade da equipe gestora ou participação da comunidade escolar na alocação e avaliação dos profissionais.

Levar a autonomia e a gestão democrática a sério é mais um caminho para a qualidade do ensino[9]. Para isso, precisaremos de gestores escolares preparados. O atual Plano Nacional de Educação apontou um caminho quando previu a combinação entre critérios de mérito e consulta à comunidade escolar no provimento dos cargos gestores[10]. O novo Fundeb, ao condicionar a complementação de recursos pela União a ações de melhoria da gestão pública[11], é um instrumento importante para concretizarmos esses objetivos.

Há muitas reformas a serem feitas na educação pública. Conhecer a história das nossas políticas públicas, comparar experiências e confiar nas gestoras e gestores são fatores para o sucesso de novas propostas.

Mariana Vilella é coordenadora da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), advogada e doutora em educação pela PUC-SP.

Artigo da série Reformas no Mundo Público, sob curadoria de Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito e sócio do CDPP.

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados.


[1] O novo Fundeb foi aprovado pela Emenda Constitucional 108/2020 e pela Lei 14.113/2020.

[2] Nota do Todos pela Educação disponível em https://todospelaeducacao.org.br/noticias/nota-avancos-do-novo-fundeb-correm-risco-com-projeto-que-altera-icms/

[3]

 Série do Todos pela Educação destaca a política: https://www.youtube.com/watch?v=aV96z2fAMnY

[4] Pesquisa disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/noticias/pesquisa-nacional-jovens-ensino-medio-2022/

[5] A pesquisa foi publicada em 2018 e está disponível em: https://publications.iadb.org/en/profesion-profesor-en-america-latina-por-que-se-perdio-el-prestigio-docente-y-como-recuperarlo-0

[6]

 A conclusão de que legislação é um dos conteúdos mais cobrados é da Fundação Carlos Chagas: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/textos_fcc/arquivos/1463/arquivoAnexado.pdf

[7] O PL já foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado. Os professores Carlos Ari Sundfeld e Conrado Tristão explicam a proposta em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-modernizacao-concurso-publico-02112021 

[8] Conforme Art. 15 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.º 9396/1996)

[9] Tratei do tema em minha tese de doutorado, sob a perspectiva da construção histórica destes princípios nas políticas públicas brasileiras: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/25894

[10] A estratégia faz parte da Meta 19 do PNE, referente à gestão democrática da educação.

[11] Conforme Art. 13 e Art. 14, § 1º, I da Lei 14.113/2020.

Sobre o autor

Mariana Vilella