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O Real de Lula 3

Folha

Nos anos 1980 até os anos 1990, para enfrentar a inflação, as empresas tinham departamentos financeiros hipertrofiados. Adicionalmente, em cada esquina havia uma agência bancária cuja única função era ajudar as pessoas, físicas e jurídicas, a conviver com a inflação. Se não houvesse inflação, todos esses recursos poderiam ser alocados em atividades socialmente mais produtivas. Nos anos em seguida ao Plano Real, boa parcela dos ganhos de eficiência e bem-estar deveu-se ao ajuste da economia à estabilidade de preços.

As duas principais agendas legislativas do governo em 2023 serão a reforma tributária dos impostos indiretos e a nova regra fiscal. Nesta coluna, trato da primeira.

A enorme complexidade dos impostos indiretos —ISS, ICMS, PIS/Cofins e IPI— requer que as empresas tenham departamentos contábeis hipertrofiados para processar o pagamento dos impostos. Uma empresa que produza um bem e o venda para os 26 estados da Federação brasileira precisa ter contadores entrando diariamente no site de cada uma das Secretarias da Fazenda estaduais para conhecer as novas normas.

Além do elevado custo de conformidade, a complexidade gera inúmeras divergências de interpretação entre a Receita Federal, as estaduais e as empresas. Essas questões batem no Carf na esfera administrativa e, em seguida, entulham nosso Judiciário com inúmeras pendências tributárias. Em cada esquina de nossas cidades há um escritório especializado em direito tributário para auxiliar as empresas a conviver com o elevadíssimo nível de litigiosidade de nossa tributação.

Adicionalmente, nossos impostos indiretos induzem que o investimento não seja feito nos locais cujo retorno social seja maior, pois a complexidade tributária e os regimes tributários especiais alteram artificialmente a rentabilidade dos investimentos e da produção. É comum caminhão em trânsito pelo Brasil carregando bens por arbitragem tributária.

As semelhanças com o Brasil da hiperinflação são claríssimas. A aprovação de uma grande simplificação dos impostos indiretos pode ter um impacto sobre a eficiência da economia equivalente a um Plano Real.

O ganho de eficiência pode gerar um saudável otimismo e, por meio da queda da percepção de risco, ajudar o governo a enfrentar a inconsistência estrutural das contas públicas.

Há uma crítica de que a reforma dos impostos indiretos é muito ambiciosa e que deveria ser fatiada. Em geral, tendo a concordar com a crítica e preferir abordagens mais incrementais de reformas institucionais. Esse não é o caso, contudo, da reforma dos impostos indiretos. O motivo segue da lógica da ação coletiva.

A complexidade tributária não caiu do céu. Cada item que agrega complexidade ao nosso sistema atende ao interesse de algum segmento organizado da sociedade. Esse grupo irá bloquear a aprovação.

No entanto, cada empresa tem uma dupla posição: por um lado, ela é beneficiária de algum regime tributário especial; e, por outro lado, sofre com a complexidade, como todas.

Se a reforma for sistêmica e atingir a todos, cada um sentirá uma perda pelo fim do seu regime especial, mas, por outro lado, cada um sentirá o ganho advindo da simplificação. Talvez consigamos uma coalizão que não bloqueie a reforma.

Se fatiarmos a reforma, os grupos afetados não sentirão os ganhos de eficiência, pois a reforma não será ampla, e certamente a bloquearão.

Link da publicação: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2023/02/o-real-de-lula-3.shtml

As opiniões aqui expressas são do autor e não refletem necessariamente as do CDPP, tampouco as dos demais associados

Sobre o autor

Samuel Pessôa